Sozinho, Mas Nunca Sozinho
Vincent Cheung, “Reflections on Second Timothy” (2010).
Na minha primeira defesa, ninguém apareceu para me apoiar; todos me abandonaram. Que isso não lhes seja cobrado. Mas o Senhor permaneceu ao meu lado e me deu forças, para que por mim a mensagem fosse plenamente proclamada e todos os gentios a ouvissem. (2 Timóteo 4:16–17)
Deus ordenou que os seres humanos formem comunidades e tenham comunhão uns com os outros. Assim, homens e mulheres se reúnem para formar famílias, várias sociedades e até mesmo nações. Deus chama seus escolhidos dessas famílias e nações, para que possam ter comunhão consigo mesmo e com Jesus Cristo, e também uns com os outros. A “igreja” é a sociedade dos crentes em Jesus Cristo, mas a palavra pode ser usada de várias maneiras diferentes. Podemos nos referir a todos aqueles que foram escolhidos para a salvação por meio de Jesus Cristo, incluindo todos os que estão na terra e os que estão no céu. Ou podemos limitar o termo apenas para aqueles que professam o Senhor Jesus na terra. Quando usada em um sentido ainda mais restrito, a palavra se refere a uma reunião local de crentes. Ou seja, neste sentido estrito, cada congregação local é uma igreja. Deus ordenou que deveria haver comunidades locais onde seu povo pudesse adorar, aprender e servir junto.
Não há dúvida de que a igreja local é uma instituição ordenada por Deus. Sua importância merece destaque. Dito isso, teólogos e pregadores frequentemente exageram o caso com afirmações que não têm apoio bíblico, ou que são baseados em inferências que vão muito além do que as passagens bíblicas relevantes permitem. Eles dizem coisas sobre a importância da comunidade humana e da obrigação da membresia e frequência à igreja que são estranhas à Bíblia, que não podem ser validamente inferidas dela e que são invenções totais. Isso não produz uma doutrina mais segura, mas sim uma falsa doutrina. O resultado não é uma comunidade forte e um serviço fiel a Jesus Cristo, mas uma teologia focada no homem, uma atitude que depende do instrumento humano e uma fraqueza generalizada e incredulidade nos cristãos.
Por exemplo, frequentemente se afirma que um cristão nunca pode desenvolver seu conhecimento bíblico melhor lendo livros em casa do que ouvindo sermões na igreja. No entanto, não há nenhuma evidência, bíblica ou não, para esta visão. De fato, parece que a afirmação não é necessariamente verdadeira ou mesmo totalmente falsa, uma vez que existem bons argumentos para dizer que uma pessoa pode desenvolver tanto a profundidade quanto a amplitude de seu conhecimento com muito mais eficácia lendo em casa do que ouvindo sermões na igreja.
Em algumas sociedades, quase qualquer pessoa pode acessar os escritos de Agostinho, Calvino, Turretini e assim por diante. Em termos de conhecimento e doutrina confiável, qual a probabilidade de o pastor de qualquer igreja local pregar sermões que rivalizam com os escritos deles? Qual a probabilidade de um pastor local pregar sermões que rivalizam com os de Spurgeon? A verdade é que, no ambiente de hoje, é mais provável que uma pessoa se desvie na doutrina indo à igreja do que ficando em casa e lendo autores geralmente confiáveis, como Calvino e Spurgeon.
A afirmação de que é superior ouvir sermões na igreja muitas vezes é acompanhada por afirmações de que “há apenas algo diferente” e que “há apenas algo sobre isso” que não está disponível para uma pessoa que fica em casa e lê. Mas, a menos que esse “algo” extra seja definido, e a menos que haja evidência bíblica para apoiar sua presença na igreja e sua ausência em casa, então a ideia equivale a mera superstição. A palavra de Deus é poderosa e eficaz em qualquer situação, o Espírito Santo está com cada crente e o conhecimento não é menos verdadeiro e útil apenas porque é obtido pelo estudo privado.
Em vez disso, devemos admitir que, se uma pessoa possui habilidades de leitura pelo menos médias, e se ela tem a disciplina para seguir estudos particulares, então é muito provável que ela ganhe muito, muito, muito, muito mais conhecimento bíblico lendo livros em casa em vez de ouvir sermões na igreja. Mesmo que a igreja ofereça aulas nas quais a Escritura é exposta em grandes detalhes, isso ainda não se compara à profundidade e amplitude que pode ser alcançada por um determinado estudante que segue um vigoroso curso de estudos particulares. É tolice e desonesto dizer o contrário. É verdade que muitas pessoas não possuem habilidades de leitura adequadas e que muitas pessoas não têm disciplina para seguir estudos particulares. Mas então o problema é com esses indivíduos, e não diz nada sobre se é ou não melhor ler livros ou ouvir sermões. Na verdade, as mesmas pessoas podem ter habilidades de ouvir ainda piores e, embora lhes falte disciplina, pode ser mais fácil estudar em casa do que ir à igreja.
A abordagem correta é admitir a verdade — que a leitura e os estudos particulares têm suas vantagens, assim como ouvir sermões na igreja. Quando se trata de crescimento em conhecimento e compreensão, ler livros de autores confiáveis é provavelmente muito mais eficaz do que ouvir sermões na igreja. Isso é especialmente provável dada a condição dos pastores e igrejas contemporâneas. No entanto, os cristãos devem ser lembrados de que aumentar o conhecimento não é a única razão para a membresia e frequência à igreja.
Outras razões para frequentar a igreja incluem adoração e serviço corporativo. No entanto, declarações exageradas também são feitas sobre eles. Em seu zelo para encorajar a membresia, frequência e participação, os líderes cristãos devem ser cuidadosos para evitar afirmações e ameaças que não podem ser apoiadas pela Escritura. Muitas, senão a maioria, das declarações sobre o que os cristãos devem fazer nessas áreas são exageradas e não podem ser validamente inferidas da Bíblia.
Às vezes, eles pensam que uma simples menção de Hebreus 10:25 é suficiente: “Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns” (ARA). Mas não é suficiente, porque esse versículo tem um contexto particular e se refere a pessoas que pararam de se reunir por um motivo particular. Se for para ser usado em algum contexto diferente e em referência a pessoas com motivos e razões diferentes, e se for mesmo para ser usado para derivar regras e ameaças, então é necessário fornecer uma justificativa sólida para isso. Caso contrário, o maior perigo para a igreja não é mais a falta de frequência, mas esses modernos fariseus que impõem suas próprias tradições humanas ao povo de Deus e que ameaçam suas almas por descumprimento.
Como outro exemplo, às vezes é dito que uma pessoa não pode crescer em santidade sem uma comunidade de pessoas que pensam como ela para encorajá-la e admoestá-la. Novamente, há apoio bíblico para dizer que uma comunidade poderia ajudar, mas não há apoio bíblico para afirmar que não se pode ter sucesso sem a ajuda de uma comunidade. É dito que uma pessoa que é considerada responsável por uma comunidade tem mais probabilidade de se conformar a um padrão de vida santa. No entanto, podemos responder que também é possível que ela se torne uma hipócrita religiosa, no sentido de que desenvolverá uma exibição exterior de santidade, sustentada pelo orgulho e pelo desejo de aprovação. É dito que Deus usa instrumentos humanos para salvar os homens da queda. Mas é antibíblico afirmar ou sugerir que Deus irá ou deve sempre usar instrumentos humanos; na verdade, é claro na Escritura que ele não o usa. Não são os homens que nos impediriam de cair, mas Deus. Às vezes ele usa instrumentos humanos; às vezes não. Afirmar a importância da comunidade com base em uma visão exagerada dos instrumentos humanos leva a regras e ameaças que não têm autoridade bíblica. E novamente, este tipo de teologia cai sob a condenação de Cristo contra os fariseus e os judeus.
Então, há a ênfase no “ministério em equipe”. Novamente, o problema não está em ensinar cooperação, mas em exagerar sua importância e aplicação. A Bíblia de fato ensina que os cristãos devem trabalhar uns com os outros e respeitar as diferentes habilidades espirituais que Deus nos deu.
Por exemplo, considere o que Paulo ensina em 1 Coríntios 12. Usando o corpo humano como metáfora, ele escreve que o olho não pode dizer à mão: “Não preciso de você” (v. 21). Aplicando isso aos dons espirituais que ele lista no início do capítulo (vv. 8–10), entendemos que ele quer dizer que uma pessoa com um dom de profecia não pode dizer a uma pessoa com o dom de cura: “Eu não preciso você”. A “necessidade” aqui é usada em um sentido específico. Ele escreve: “O corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros”. Ou seja, sua preocupação é por uma igreja saudável e completa. E quando isso está em vista, então há uma “necessidade” para cada membro. Uma pessoa não pode fazer tudo. A pessoa que tem o dom de profecia, mas não o dom de cura, pode profetizar, mas não pode curar os enfermos com o dom de cura. Embora ele ainda possa curar os enfermos pela fé, isso não substitui inteiramente aquele que tem o dom de cura, que foi designado por Deus para assumir esse papel na congregação.
Não devemos exagerar o que isso significa para o ministério em equipe. Embora a pessoa que tem o dom de profecia não possa realizar a função de outra pessoa, ela ainda pode realizar a função para a qual foi habilitada. Ou seja, ela não pode dizer àquele que tem o dom de cura: “Eu não preciso de você”, se o contexto é a saúde de uma igreja completa, mas como indivíduo, a pessoa que tem o dom de profetizar pode fazer isso, esteja ela associada ou não à pessoa que tem o dom de curar, ou a qualquer outra pessoa. Da mesma forma, a pessoa que tem o dom de pregar, escrever ou cantar, tem a habilidade de fazê-lo, esteja ou não associada a qualquer igreja ou a qualquer outra pessoa. Portanto, ampliar a ideia de “necessidade” além das restrições do contexto bíblico pode levar a um ensino exagerado sobre o ministério em equipe.
O ensino às vezes é tão exagerado que é como se um ministério solitário fosse sempre errado, até mesmo pecaminoso, e até mesmo fadado ao fracasso. Às vezes é sugerido que um ministro ou crente sempre cairá se ficar sozinho. No entanto, esse ensino não pode ser derivado da Escritura; em vez disso, é uma manifestação de fraqueza e incredulidade.
Costuma-se dizer que devemos olhar para Jesus como nosso modelo, e até mesmo ele escolheu discípulos para estar ao seu redor. Mas essa é uma visão enganosa de seu ministério, pois é mais fácil argumentar que eles o atrapalharam em vez de ajudá-lo. Vez após vez, o Senhor os repreendeu por pela falta de fé e compreensão deles. Às vezes, eles eram até usados pelo diabo para tentar o Senhor a pecar, como quando pediram permissão para invocar fogo do céu para consumir aqueles que rejeitavam seu ministério, e quando Pedro insistiu que ele não seria morto e ressuscitado dos mortos.
Então, no momento mais crucial, quando Jesus pediu aos discípulos que orassem com ele antes de sua prisão, eles adormeceram. E depois de sua prisão, eles fugiram e o abandonaram. Ele sabia que tudo isso aconteceria e disse: “Aproxima-se a hora, e já chegou, quando vocês serão espalhados cada um para a sua casa. Vocês me deixarão sozinho. Mas eu não estou sozinho, pois meu Pai está comigo” (João 16:32). Se aspiramos ser como Jesus, então paremos de dar desculpas e paremos de codificar nossa fraqueza e incredulidade em doutrina. Em vez disso, estejamos dispostos a trabalhar com outras pessoas, mas também aspiremos ser capazes de ficar sozinhos.
Isso é especialmente importante para um líder cristão. Ele não deve precisar de uma comunidade de crentes para sustentá-lo na fé. Em vez disso, ele deve ser capaz de erguer sozinho uma congregação temerosa e desanimada. Na verdade, ele deve ser capaz de permanecer fiel e destemido no Senhor, mesmo quando toda a comunidade cristã e não cristã se unir contra ele a fim de se opor aos preceitos e mandamentos do Senhor. Se um ministro do evangelho é capaz de alcançar isso é uma questão, mas não há garantia de tornar isso uma questão de doutrina dizer que isso é impossível de alcançar.
Às vezes, é a vontade de Deus que o homem fique sozinho. Isso é inegável. Como Paulo escreve: “Na minha primeira defesa, ninguém apareceu para me apoiar; todos me abandonaram”. À luz disso, é uma grande injustiça para os crentes exagerar na doutrina da comunidade e da cooperação, porque pode deixá-los confusos e despreparados se forem deixados sozinhos. Em vez disso, devemos ensinar-lhes que Deus não lhes deu um espírito de medo, mas um espírito de poder, de amor e de uma mente sã. Um cristão pode ficar sozinho, mesmo quando todos os outros o abandonaram, porque o Senhor está com ele, e ele pode fazer todas as coisas em Cristo que o fortalece.
Vincent Cheung. Alone, But Never Alone. Disponível em Reflections on Second Timothy (2010), pp. 78–81. Tradução: Luan Tavares (20/05/2021).
━━━━━━━━━//━━━━━━━━
© Vincent Cheung. A menos que haja outra indicação, as citações bíblicas usadas neste artigo pertencem à BÍBLIA SAGRADA, NOVA VERSÃO INTERNACIONAL ® NVI ® Copyright © 1993, 2000, 2011 de Sociedade Bíblica Internacional. Todos os direitos reservados.