Quem Quiser, Pode Vir
Quando converso com meus pais e com meu pastor, é típico eles dizerem “quem quiser, pode vir” como uma declaração que de certa forma prova o livre-arbítrio do homem e refuta a ideia de que a salvação procede somente de Deus.
Uma das falácias mais frequentes que as pessoas cometem é a falácia da irrelevância. Portanto, sempre que nos depararmos com um argumento ou objeção que supostamente refuta o que a Escritura ensina, alguma vezes é suficiente simplesmente perguntar: “E daí?”.
Como muitas das objeções dos arminianos, essa é uma que não entendeu o ponto de forma alguma. Talvez eles tenham em mente Apocalipse 22:17, que diz “quem quiser tome de graça da água da vida” (ARC). Visto que isso é o que Deus diz, prontamente concordamos, mas e agora? Quem verdadeiramente virá? O versículo não nos diz. Ou, para ser mais preciso, por que alguém decide vir? Qual é a causa metafísica e espiritual por detrás da decisão da pessoa e a mudança de sua disposição? Essa é a questão. A declaração de Apocalipse, ou qualquer outra declaração que diga “todo aquele”¹ para esse assunto, nos diz apenas o que está disponível para a pessoa que vem, ou o que acontece com ela. Não nos diz o porquê alguém viria, ou o porquê uma pessoa vem quando o faz.
Aqui está algo que escrevi em Born Again [Nascido de Novo], minha exposição de João 3:
Eu posso dizer: “Todo aquele que se tornar um peixe pode respirar debaixo d’água”. A declaração é verdadeira, mas isso não significa que uma pessoa pode se tornar um peixe a qualquer hora que desejar. De fato, qualquer inferência sobre a capacidade de alguém é estritamente inválida, visto que a declaração não contém nenhuma informação sobre capacidade, exceto sobre a capacidade do peixe respirar debaixo d’água. Quer seja possível ou não para uma pessoa se tornar um peixe, ninguém pode inferir nada a partir da declaração em si, mas ela apenas nos informa sobre o que aconteceria a uma pessoa que se transformasse em um peixe.
Além do mais, mesmo que seja possível para uma pessoa se tornar um peixe, a declaração não diz nada sobre como isso é possível, ou se está dentro do próprio poder da pessoa fazer isso. Deus é certamente capaz de fazer um homem tornar-se um peixe, mas um homem “não pode tornar branco ou preto nem um fio de cabelo” (Mateus 5:36). Uma afirmação como essa que fiz não nos diz nada sobre a capacidade de uma pessoa, mas a informação sobre a capacidade deve ser obtida em outro lugar.
Sempre que estamos falando sobre algo que é impossível ao homem — tal como tornar-se um peixe — então isso significa que ou isso nunca acontecerá, ou Deus deve fazer com que isso aconteça pela sua onipotência.¹
Os arminianos não têm nenhum respeito pela linguagem real do texto, o que significa que eles não possuem nenhum respeito pelo seu autor. Eles estão determinados a inferir a partir dele tudo o que querem, mesmo quando o texto não aborda o assunto de forma alguma.
Ao responder à questão do porquê alguém vem a Cristo, a Bíblia diz que é Deus quem escolhe a pessoa, muda sua natureza e controla sua mente, e isso é o que a faz “vir”. Temos estabelecido isso muitas vezes a partir da Escritura, então não o repetiremos aqui.
De qualquer forma, esse é o ensino bíblico que os arminianos devem refutar. Da forma como se apresenta, a objeção deles equivale a dizer: “O calvinismo é errado porque a Bíblia ensina que todo aquele que crê em Cristo será salvo”. Mas isso nem mesmo se aplica ao debate, visto que o calvinismo não afirma que algumas pessoas que creem em Cristo serão condenadas mesmo assim. Não, o calvinismo concorda que todos os crentes serão salvos. A questão é e sempre foi quem crerá em Cristo, e o que faz essas pessoas crerem nele.
Sempre que você for confrontado com uma objeção contra a fé cristã, é sempre prudente questionar a relevância do que é afirmado e fazer o oponente demonstrar a relevância. Nesse caso, algumas vezes sem ciência disso, parece que os arminianos assumem que o mandamento de Deus, que torna o homem responsável, também pressupõe habilidade ou liberdade humana. Mas como menciono frequentemente, embora o mandamento de Deus e a responsabilidade do homem estejam inseparavelmente relacionados, não há nenhuma relação bíblica ou lógica entre mandamento divino (ou soberania) e liberdade humana (ou habilidade), ou entre responsabilidade e liberdade humana.
Dizer que somos responsáveis não tem nada a ver com sermos livres ou não, mas somente com o mandamento e julgamento de Deus. A suposição que conecta essas coisas dissociadas nunca foi provada e raramente foi sequer defendida em toda a história da filosofia e teologia, e é diretamente negada pela Escritura. Todavia, essa premissa antibíblica é compartilhada também por muitos calvinistas inconsistentes, levando a uma formulação teológica incoerente e embaraçosa, e à invenção de doutrinas enganosas tais como a liberdade compatibilista.
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¹ Nota do Tradutor: Na versão usada pelo autor (KJV), o versículo de Apocalipse 22:17 traz a palavra whosoever, que significa “quem quer que”, “todo aquele que”, “qualquer pessoa que”, “seja quem for”, etc.
² Depois eu ofereço uma ilustração a partir de Mateus 19:23–26.
Vincent Cheung. Blasphemy and Mystery (2007), pp. 47–48. Tradução: Luan Tavares (10/07/2019).