Quem Me Libertará?
Que diremos então? A Lei é pecado? De maneira nenhuma! […] Pois o pecado, aproveitando a oportunidade dada pelo mandamento, enganou-me e por meio do mandamento me matou. De fato a Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom.
E então, o que é bom se tornou em morte para mim? De maneira nenhuma! Mas, para que o pecado se mostrasse como pecado, ele produziu morte em mim por meio do que era bom, de modo que por meio do mandamento ele se mostrasse extremamente pecaminoso.
Sabemos que a Lei é espiritual; eu, contudo, não o sou, pois fui vendido como escravo ao pecado. Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio. E, se faço o que não desejo, admito que a Lei é boa. […]
Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim. No íntimo do meu ser tenho prazer na Lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros.
Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! (Romanos 7:7, 11–16, 21–25)
Há uma série de questões em Romanos 7, incluindo um debate sobre se Paulo está descrevendo suas próprias lutas como cristão ou se ele se refere às suas experiências anteriores como não cristão. Por esta razão, qualquer mensagem no texto requer algum esforço para evitar que se torne um comentário exegético. Iremos, no entanto, considerar brevemente esta questão para que ela não se torne um obstáculo.
Se folhearmos o texto com nossos termos e categorias cristãos usuais em mente, parecerá que Paulo deve estar falando sobre uma pessoa regenerada. Ele escreve: “Desejo de fazer o que é bom” e “Tenho prazer na Lei de Deus”, mas o não regenerado não deseja fazer o bem e não tem prazer na lei de Deus. Os capítulos anteriores desta mesma carta destruíram a possibilidade de que um não cristão pudesse desejar sinceramente fazer o bem ou se deleitar com a lei. Essa verdade é tão decisiva e inflexível que poderia obrigar todas as outras considerações a acomodá-la.
No entanto, quando examinamos o texto em seu contexto e em seus próprios termos, essa conclusão não é facilmente alcançada. O versículo 14 diz: “Não o sou [espiritual], pois fui vendido como escravo ao pecado”. O pensamento foi retirado do capítulo anterior, não muitos versículos antes deste, e descreve uma pessoa em um estado não regenerado. Lá, Paulo declara que o cristão não é mais escravo do pecado, mas escravo da justiça. Além disso, não há menção de Cristo na descrição, como se ele estivesse ausente da vida do homem enquanto ele luta; antes, Cristo é apresentado em 7:25 como uma solução para a luta. Então, 8:1 parece ser uma transição para a vida cristã.
Se tomarmos o “eu” nos versículos 14 a 25 não como uma autodesignação literal, mas como um “eu” editorial que representa o judeu típico, uma série de questões parecem ser resolvidas de uma vez. Isso explica a mudança do tempo passado para o presente no versículo 14. Ele dissolve qualquer conflito com a afirmação de Paulo de que ele era “irrepreensível” quanto à lei (Filipenses 3:6). Não há conflito em primeiro lugar, visto que em Filipenses ele provavelmente está se referindo à justiça legalista dos fariseus, e não à perfeita obediência real à lei de Moisés. Isso é evidente, pois na mesma declaração em que ele afirma ser irrepreensível, ele também se refere à sua perseguição à igreja, e isso como um símbolo de seu zelo. Como Jesus argumentou, a mesma lei que apontava para Cristo não teria tolerado seu assassinato e, por extensão, não teria endossado a perseguição à igreja como algo justo (João 7:19, 8:40; Atos 9:4). Assim, parece que o desejo do homem de fazer o bem e seu deleite na lei não se referem à fé sincera do cristão, mas ao zelo ignorante do judeu (10:2).
Mesmo se uma interpretação definitiva não possa ser derivada em alguns parágrafos, o objetivo principal é claro. A seção de fato continua a responder algumas das falsas inferências do ensino de Paulo sobre a lei. Em 6:1–2, ele escreve: “Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça aumente? De maneira nenhuma!” Então, em 6:15, ele escreve: “E então? Vamos pecar porque não estamos debaixo da Lei, mas debaixo da graça? De maneira nenhuma!” Agora, em 7:7, ele continua: “Que diremos então? A Lei é pecado? De maneira nenhuma!” E em 7:13, ele escreve: “E então, o que é bom se tornou em morte para mim? De maneira nenhuma!”
As falsas inferências são muito tolas. Elas refletem as suposições que orientam o pensamento dos incrédulos e dos teólogos infiéis. A doutrina de Paulo é que Deus colocou todos os homens debaixo do pecado para que ele possa mostrar misericórdia àqueles a quem ele criou para a salvação e para que ele possa mostrar sua ira contra aqueles que ele criou para a condenação. A lei não foi dada para que os homens pudessem ganhar o seu caminho para o céu, porém mais mandamentos foram revelados para que mais violações dos mandamentos ocorressem — “para que a transgressão fosse ressaltada”.
Incapaz de fazer distinções simples e óbvias, o oponente de Paulo pergunta: “Continuaremos pecando para que a graça aumente?” e “Vamos pecar porque não estamos debaixo da Lei, mas debaixo da graça?” Encontramos uma deficiência intelectual semelhante naqueles que perguntam: “Se Deus é soberano sobre todas as coisas, incluindo os pensamentos e decisões humanas, então por que devemos pregar o evangelho?” Porque ele mandou você fazer isso, seu miserável rebelde! O decreto de Deus e seu mandamento são duas coisas diferentes. Um se refere à causação e o outro à definição. E novamente: “Se Deus é o autor do pecado, isso não o torna injusto?” Só se ele definisse sua própria soberania como injusta, seu pirralho arrogante! Você confinaria Deus ou o condenaria por seu próprio padrão, como se você governasse sobre o Todo-Poderoso, e como se o universo girasse em torno de você? No entanto, esta é a triste história da teologia cristã, de modo que os eruditos consideram necessário preservar algum senso de liberdade humana e argumentar por sua compatibilidade com a soberania divina, e apelar para antinomias e paradoxos a fim de isentar Deus do tribunal do homem. Mas a causação metafísica de uma ação ou evento e o julgamento ético de uma ação ou evento pertencem a duas categorias inteiramente diferentes. Falhando em entender isso, tanto os incrédulos quanto os crentes continuam a se opor à doutrina do apóstolo.
Paulo abordou as duas falsas inferências em Romanos 6. Agora surgem duas outras: “Que diremos então? A Lei é pecado?” e “O que é bom se tornou em morte para mim?” Parafraseando a sua resposta, não é que a lei seja má, mas que o homem é mau, e não é que a lei por si mesma causa a morte, mas que o pecado conduz à morte ao levar o homem a transgredir a lei. É bom que a lei condene o adultério, mas o pervertido o faz mesmo assim. Uma parede de tijolos por si só não mata, mas o lunático enfia a cabeça nela e deixa que outros limpem a bagunça.
Se tomarmos a última seção como uma descrição de um homem não regenerado que é zeloso pela lei, também pode se tornar uma analogia para todos aqueles que não têm a lei escrita, mas que são zelosos para conseguir paz de consciência ou seguir sua visão adotada da vida. A situação então se torna como aquela em Romanos 1 e 2. Lá Paulo mostra que os judeus têm a lei, mas eles nunca a obedecem. E embora os gentios não tenham o código escrito, eles revelam uma consciência instintiva das “exigências da lei” e também falham em obedecê-la. Portanto, todos os judeus e gentios estão condenados.
Aqui o homem zela pela lei, mas descobre que não pode obedecê-la. Há um poder maligno dentro dele que não o deixa fazer isso. Quanto mais a justiça é definida e declarada a ele, mais esse poder é estimulado para se rebelar e praticar o mal. Embora o foco de Paulo seja a relação do homem com o pecado e a lei, uma luta semelhante é percebida naqueles sem a lei. Um homem é atormentado pela batalha perdida para viver de acordo com o padrão pelo qual se esforça. Ele é um transgressor. Ele morrerá como um pecador, um fracassado total.
Qual é a solução? Quem vai libertá-lo? “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” Embora a lei fosse boa, ela era impotente para produzir o bem “por estar enfraquecida pela carne” — porque os homens eram maus. Deus cumpriu o que a lei não podia fazer “enviando seu próprio Filho, à semelhança do homem pecador, como oferta pelo pecado” (8:3). Em outras palavras, o que os mandamentos falharam em fazer, e o que a tradição legalista e a luta existencial falharam em fazer, Deus fez ao providenciar uma expiação, o sacrifício de Jesus Cristo, “a fim de que as justas exigências da Lei fossem plenamente satisfeitas em nós” (8:4). Aqueles que não estão unidos a ele permanecem em desespero e ira, mas “agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (8:1). Ele nos liberta da luta sem esperança e nos conduz a uma nova vida na qual não vivemos mais segundo o poder maligno da carne, mas segundo o Espírito do Senhor (8:4).
Vincent Cheung. Who will Rescue Me? Disponível em Sermonettes — Volume 5 (2011), pp. 51–53. Tradução: Luan Tavares (05/01/2021).