Os Nobres Bereanos
Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo. (Atos 17:11)[1]
Quando ministros e crentes cristãos mencionam os bereanos, eles geralmente têm em mente um grupo de indivíduos que tinham discernimento, e que não eram facilmente enganados por qualquer nova mensagem que surgisse, porque tinham o cuidado de verificar tudo o que um pregador dizia com a Escritura. Essas não eram pessoas ingênuas, e não estavam dispostas a aceitar qualquer coisa que alguém ensinasse, a menos que viesse diretamente da Escritura. E como a Escritura chama essas pessoas de “nobres”, é apropriado imitar o exemplo delas.
Isso por si só é um ensino bíblico sólido, e outras partes da Escritura também o confirmam. Por exemplo, 1 Tessalonicenses 5:21 diz: “Ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom”, e 1 João 4:1 adverte: “Amados, não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo”.
No entanto, ao direcionar a maior parte de sua atenção para a última parte de Atos 17:11, que diz que os bereanos “examinavam todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo”, muitas pessoas falharam em reconhecer o principal impulso do versículo e um dos principais sentidos da primeira metade de Atos 17.
A verdadeira virtude dos bereanos é afirmada pela ênfase principal do versículo, e não na explicação ou qualificação da ênfase principal do versículo. Como os bereanos são frequentemente apresentados como modelos dignos de nossa imitação, uma visão distorcida ou parcial da virtude deles resultaria em uma imitação distorcida ou parcial e, portanto, um caráter defeituoso precisamente na área em que desejamos aprender com eles.
A ênfase principal do versículo 11 é fácil de entender apenas lendo o versículo inteiro e, em seguida, o versículo no contexto da primeira metade de Atos 17.
A palavra traduzida como “nobre” pode se referir a nascimento nobre ou caráter nobre. É claramente usada neste último sentido em nosso versículo. Quanto ao modo como os bereanos eram nobres, o versículo lhes aplica a palavra em contraste com o caráter dos “tessalonicenses”. Portanto, para entender o caráter nobre dos bereanos, devemos primeiro voltar ao início de Atos 17 e ler sobre os tessalonicenses:
Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga judaica. Segundo o seu costume, Paulo foi à sinagoga e por três sábados discutiu com eles com base nas Escrituras, explicando e provando que o Cristo deveria sofrer e ressuscitar dentre os mortos. E dizia: “Este Jesus que proclamo é o Cristo”. Alguns dos judeus foram persuadidos e se uniram a Paulo e Silas, bem como muitos gregos tementes a Deus e não poucas mulheres de alta posição. (vv. 1–4)
Sempre que Paulo chegava a um novo local em sua jornada missionária, era seu costume visitar as sinagogas locais para poder pregar aos judeus (veja vv. 10, 17).[2] Os judeus professavam fé na Escritura, e deveria ter sido natural para eles abraçar com grande interesse uma mensagem declarando o cumprimento perfeito das promessas da Escritura. Assim, Paulo “discutiu com eles com base nas Escrituras”, e foi sob a base da Escritura que ele pregou o evangelho, o que significa “explicar e provar que o Cristo deveria sofrer e ressuscitar dentre os mortos”.
Como resultado, várias pessoas (judeus e gregos) creram e foram salvas. Mas esses não são “os tessalonicenses” sobre os quais o versículo 11 está falando. Em vez disso, os problemas aparecem a partir do versículo 5:
Mas os judeus ficaram com inveja. Reuniram alguns homens perversos dentre os desocupados e, com a multidão, iniciaram um tumulto na cidade. Invadiram a casa de Jasom, em busca de Paulo e Silas, a fim de trazê-los para o meio da multidão. Contudo, não os achando, arrastaram Jasom e alguns outros irmãos para diante dos oficiais da cidade, gritando: “Esses homens, que têm causado alvoroço por todo o mundo, agora chegaram aqui, e Jasom os recebeu em sua casa. Todos eles estão agindo contra os decretos de César, dizendo que existe um outro rei, chamado Jesus”. Ouvindo isso, a multidão e os oficiais da cidade ficaram agitados. Então receberam de Jasom e dos outros a fiança estipulada e os soltaram. (vv. 5–9)
Por causa de uma resistência invejosa à mensagem do evangelho, esses judeus incitaram um tumulto na cidade contra os apóstolos. Eles manipularam a situação contra esses pregadores do evangelho, levantando acusações enganosas contra eles. O versículo 10 mostra como os cristãos ajudaram Paulo e Silas a fugir para Bereia.
A política religiosa é um mal hediondo e alarmante em nossos dias. Mesmo nos melhores círculos cristãos, os conflitos teológicos geralmente não são realizados apenas pelo discurso racional, mas também incitando a multidão e aplicando pressão social e política. Um lado da questão é frequentemente preferido pela multidão e pelas instituições, e assim os argumentos bíblicos e os apelos fundamentados são frequentemente reprimidos e abafados.
Às vezes, pode parecer uma refutação, mas mesmo assim, a posição muitas vezes não bíblica e irracional ainda é sustentada mais por sua popularidade entre as pessoas e as instituições do que por revelação bíblica. Mas aqueles que se mantêm firmes na Escritura e na Razão[3] não têm nada a temer, isto é, exceto as próprias almas daqueles que os perseguem.
De qualquer forma, é em contraste com esses tessalonicenses que o versículo 11 elogia o caráter nobre dos bereanos. Portanto, devemos esperar que a virtude dos bereanos seja o oposto do defeito dos tessalonicenses. Imediatamente percebemos que essa virtude não pode ser o fato de eles terem conferido a pregação dos apóstolos; caso contrário, isso implicaria que o defeito dos tessalonicenses era que eles eram muito rápidos em crer no evangelho, mas os versículos 5–9 nos dizem o contrário.
A virtude dos bereanos era o oposto do defeito dos tessalonicenses, pois os bereanos “receberam a mensagem com grande interesse”. Ao contrário de alguns judeus de Tessalônica, os bereanos não duvidaram ou resistiram à mensagem do evangelho, e não perseguiram os pregadores nem lhes trataram mal. Essa é a ênfase principal da Escritura no versículo 11 e, ao procurar imitar os bereanos, é essa característica que devemos primeiro reconhecer e considerar.
Muitos comentários falham em reconhecer essa ênfase primária ou dá-la o devido lugar em suas exposições, e neste momento não me lembro de ouvir sequer um ministro que fez disso o ponto principal de seu sermão quando pregou no versículo 11. Não duvido que alguns ministros reconheceram o impulso principal do versículo e pregaram de acordo, mas esses casos parecem ser muito poucos. Em vez disso, o versículo é mais frequentemente usado para ensinar discernimento, e de uma maneira que obscurece a característica positiva da aceitação ansiosa da palavra de Deus.
Juntamente com vários outros, Matthew Henry é uma exceção notável a essa negligência. Para um comentário que precisa cobrir muitos assuntos, ainda assim ele dedica uma seção significativa de como os bereanos estavam interessados em receber o evangelho. A seção que segue imediatamente sobre discernimento é apenas um pouco mais longa. Ele escreve:
Diferente dos judeus em Tessalônica, estes de Bereia não prejulgaram a causa evangelizadora, nem foram movidos de inveja dos que a promoviam. Eles deram audiência aos pregadores do evangelho e ouviram com a devida atenção a mensagem evangelizadora […]. Não procuraram disputas com a palavra, nem acharam erro nela, nem investigaram meios de oporem-se aos pregadores. Eles a acolheram com alegria e avaliaram imparcialmente todas as coisas que eram ditas. Neste ponto, foram mais nobres do que os judeus em Tessalônica […].[4]
É somente com isso em mente que podemos entender corretamente o versículo 11 e entender com que atitude os bereanos “examinavam as Escrituras”. Os bereanos eram de caráter nobre não porque eram duvidosos ou difíceis de convencer, mas porque eram ensináveis e receptivos ao evangelho. Por esse motivo, algumas traduções e comentários sugerem traduzir “nobre” como “liberal”, “generoso”, “sincero” ou “mente-aberta”.[5]
No entanto, essa “receptividade” é ao mesmo tempo específica e restrita. É nesse ponto que devemos prosseguir para a parte final do versículo, que nos diz que, embora os bereanos estivessem ansiosos por ouvir de Deus, eles não eram pessoas completamente tolas ou ingênuas. E porque já consideramos o ponto principal do versículo, ou seja, que eles foram ensináveis e receptivos ao evangelho, agora estamos prontos para considerar como essa disponibilidade é qualificada.
Eles não eram nada parecidos com o povo de Atenas, que “ali viviam não se preocupavam com outra coisa senão falar ou ouvir as últimas novidades” (v. 21). Eles não tinham grande interesse em ouvir os apóstolos por mera curiosidade ou por diversão intelectual e entretenimento, e não estavam abertos a nenhuma teoria ou doutrina nova que chamasse sua atenção. Em vez disso, eles estavam interessados em aprender a verdade, se “estas coisas eram assim” (ARC),[6] e não apenas em ouvir algo que parece interessante ou incomum. E para determinar se “estas coisas” que Paulo pregou “eram assim”, eles “examinaram as Escrituras”.
Portanto, eles mostraram que eram “de mente aberta”, não no sentido de serem tolos ou crédulos, e menos ainda relativísticos ou pluralistas. Eles não eram abertos a simplesmente qualquer coisa ou qualquer um. Mas, esforçando-se pela verdade, mostraram que sua disponibilidade era racional e, pesquisando a Escritura, mostraram que sua disponibilidade era bíblica, de modo que todas as teorias e doutrinas não bíblicas foram excluídas desde o início. Isso também faz parte de seu caráter nobre, e é também isso que os crentes hoje devem imitar.
Além disso, como é desse modo e com base nisso que “muitos creram”, também mostrava que a resposta deles “não era mera resposta emocional ao evangelho, mas baseada em convicção intelectual”.[7] A fé deles era genuína, uma convicção intelectual sobre a verdade revelada e uma vida espiritual fundada nessa convicção bíblica e racional pode sobreviver aos testes de perseguição e tentação.
Assim como devemos seguir o exemplo deles como ouvintes, não devemos ficar satisfeitos com nada menos do nosso público como pregadores. E isso significa que os ministros cristãos devem se esforçar para ser o mesmo tipo de pregadores que os bereanos ouviram, para que, como Paulo, devemos pregar e discutir “a partir das Escrituras, explicando e provando” Cristo aos nossos ouvintes.
Ainda assim, devido à maneira desequilibrada em que muitas pessoas aplicaram nosso versículo, devemos novamente nos lembrar de seu sentido principal e da principal razão pela qual os bereanos foram chamados nobres. Eles não foram elogiados por suspeitarem e serem hostis, mas porque tinham grande interesse em ouvir o evangelho.
A atitude deles foi: “Vocês nos trouxeram uma boa mensagem de Deus; vamos também verificá-la nas Escrituras”, em vez de: “Não nos reputem como pessoas estúpidas e crédulas. Não os deixaremos se safar de nada, e não acreditaremos em nada que vocês disserem, a menos que provem a partir das Escrituras”. Ora, a primeira atitude também não reflete nenhuma credulidade, mas é caracterizada por um caráter nobre, uma atitude de recepção à revelação de Deus.
Deus não se agrada quando o discernimento se torna resistência e obstinação disfarçada. Como diz a Escritura: “Se hoje vocês ouvirem a sua voz, não endureçam o coração” (Hebreus 4:7). Cristãos de caráter “nobre” não duvidam maliciosamente, mas são inteligentemente ensináveis. Eles respeitam os mensageiros de Deus; eles querem ouvir a palavra de Deus com grande interesse; e são rápidos para crer e rápidos para obedecer.
Portanto, se quisermos imitar os nobres bereanos, receberemos prontamente a palavra de Deus dos ministros fiéis, e teremos tanto interesse em afirmar e praticar a verdade que eles proclamam que examinaremos a Escritura “todos os dias” (v. 11), de modo que também construamos nossa crença e adoração corretas na rocha firme da revelação.
Continuemos a ensinar os crentes a “pôr à prova todas as coisas”, mas quando falarmos sobre os bereanos, também relatemos com precisão a natureza do caráter nobre deles, que eles tinham grande interesse em ouvir e receber a palavra de Deus. E não devemos perder essa simples devoção à palavra de Deus, mesmo se pensarmos que adquirimos muito conhecimento e discernimento; antes, permanecemos humildes, ensináveis — e nobres.
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[1] Nota do Tradutor: A menos que haja outra indicação, todas as versões bíblicas foram extraídas da NVI (Nova Versão Internacional), de 2011. “[…] pois recebiam a mensagem com grande entusiasmo e examinavam as Escrituras todos os dias para ver se o que Paulo dizia era verdade”, na versão original do autor (New International Version — NIV).
[2] Para uma exposição detalhada sobre a segunda metade de Atos 17, na qual Paulo trata com um público não judeu, incluindo alguns filósofos gregos, por favor, veja meu livro Presuppositional Confrontations, capítulo 2.
[3] A Escritura é uma revelação de Cristo, a Razão, ou Logos, e apenas o que é escriturístico é racional. Nesse sentido, eu igualo os dois.
[4] Matthew Henry’s Commentary, Vol. 6: Acts to Revelation (Hendrickson Publishers), p. 179. [Nota do Tradutor: Trecho em português extraído de HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Novo Testamento — Atos a Apocalipse (edição completa). Rio de Janeiro: CPAD, 1ª Edição, 2008, p. 188.]
[5] Embora essas traduções sejam consistentes com o significado intencionado do versículo, é melhor reter “nobres”, visto que a palavra original se refere a algo de alta qualidade, seja em termos de nascimento como de caráter. O contexto basta para nos dizer em que sentido e de que forma os bereanos eram nobres, e algo como “mente-aberta” parece muito interpretativo, perdendo algo do significado original do versículo. [Nota do Tradutor: Nas versões em inglês aparecem “Noble”, “liberal”, “generous”, “fair-minded”, ou “open-minded”.]
[6] Nota do Tradutor: Aqui o autor usou a KJV (King James Version).
[7] I. Howard Marshall, Acts (Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1980), p. 280.
Vincent Cheung. The Noble Bereans. Disponível em Pure Religion (2006), pp.42–48. Tradução: Luan Tavares (13/03/2020).