O Grito de Satanás

Vincent Cheung, “Fulcrum (2017).

As Obras de Vincent Cheung
9 min readMay 14, 2021
O Grito, de Edvard Munch.

Você perguntou sobre 2 Reis 20:1–6. O rei Ezequias estava doente, e Deus lhe disse por meio de Isaías: “Ponha em ordem a sua casa, pois você vai morrer; não se recuperará” (2 Reis 20:1). Não havia “se” ou “mas” ou “a menos que”. Era uma profecia definida. Deus disse que ele não se recuperaria da doença, mas que ele morreria. Em vez de dizer “Que seja feita a vontade de Deus”, Ezequias orou e disse a Deus que se lembrasse da fidelidade do homem. Embora Deus já tinha dito “Você não se recuperará”, ele disse a Isaías para marchar de volta ao lugar e anunciar: “Eu o curarei. Acrescentarei quinze anos à sua vida”.

Isso não deve nos confundir, apesar de crermos que a soberania de Deus é absoluta e exaustiva. O que Isaías disse foi preciso. Ezequias teria morrido de sua doença, mas então ele interagiu com os princípios estabelecidos de Deus e orou, e recebeu cura. O caso é bastante simples. Deus anunciou o que aconteceria em relação à condição de Ezequias. Então Ezequias interagiu com o preceito revelado por Deus, e Deus anunciou o que aconteceria em relação à nova condição de Ezequias. Se abordarmos isso da perspectiva da metafísica do começo ao fim, removendo todas as considerações relativas, devemos adicionar algumas nuances, mas não estamos falando sobre metafísica. Na maioria das vezes, a Bíblia fala sobre como interagimos com Deus e como nossa fé se relaciona com nosso resultado. Não há nenhum problema e nenhum mistério aqui.

Como Jeremias 18 diz: “Então o SENHOR dirigiu-me a palavra: ‘Ó comunidade de Israel, será que eu não posso agir com vocês como fez o oleiro?’, pergunta o SENHOR. ‘Como barro nas mãos do oleiro, assim são vocês nas minhas mãos, ó comunidade de Israel. Se em algum momento eu decretar que uma nação ou um reino seja arrancado, despedaçado e arruinado, e se essa nação que eu adverti converter-se da sua perversidade, então eu me arrependerei e não trarei sobre ela a desgraça que eu tinha planejado. E, se noutra ocasião eu decretar que uma nação ou um reino seja edificado e plantado, e se ele fizer o que eu reprovo e não me obedecer, então me arrependerei do bem que eu pretendia fazer em favor dele. Agora, portanto, diga ao povo de Judá e aos habitantes de Jerusalém: Assim diz o SENHOR: Estou preparando uma desgraça e fazendo um plano contra vocês. Por isso, converta-se cada um de seu mau procedimento e corrija a sua conduta e as suas ações’” (vv. 5–11).

Quero que notemos três coisas. Primeiro, a passagem é uma declaração da soberania de Deus, não da liberdade do homem (v. 6). Paulo menciona a metáfora do oleiro e a aplica à soberania de Deus na conversão e endurecimento das pessoas (Romanos 9:10–24). Sua soberania inclui controle direto sobre os corações e decisões dos homens. Segundo, a soberania de Deus não destrói sua interação com os homens, mas se torna a base para essa interação (vv. 7–10). Ele é soberano; portanto, ele pode fazer o que quiser — de modo que, se ele declara julgamento, mas os homens se arrependem, ele é soberano para “não trazer a desgraça”, e se ele declara bênção, mas os homens apostatam, então ele é soberano para “se arrepender do bem”. Se nossa teologia tropeça nisso, é porque fizemos suposições falsas com base no primeiro ponto. Foi o que aconteceu no calvinismo padrão que alega afirmar a doutrina da soberania divina, bem como grande parte do evangelicalismo que nega uma versão absoluta da soberania divina. O apelo deles à “vontade de Deus” é grosseiramente defeituoso.

Terceiro, nossa pregação deve refletir a realidade dessa interação entre Deus e os homens, essa interação entre nossa fé e nosso resultado. Em outras palavras, sua situação deve provocar uma resposta de você e essa resposta influenciaria o resultado. Assim como o versículo 6 é consistente com o versículo 11, a soberania de Deus é totalmente consistente com pregar às pessoas: “Arrependam-se e vocês serão salvos. Tenham fé e serão curados”. De fato, se não pregarmos dessa maneira, isso só pode significar que pervertemos a doutrina da soberania de Deus (v. 6), de modo que derrubamos a doutrina de nossa interação com Deus (vv. 7–10). Novamente, se pregarmos: “Tenham fé, e então as promessas de Deus acontecerão com você — se for a vontade de Deus”, então perverteremos o versículo 6 e ignoramos totalmente os versículos 7–10. Pelo contrário, com base em 2 Reis e Jeremias 18, devemos pregar: “Deus é soberano, portanto, mesmo que ele lhe diga bem na sua cara que você morrerá de sua doença, se você se apegar às promessas de cura pela fé, então ele o curará”. Foi o que aconteceu com Ezequias. Isto é o que foi dito através de Jeremias. Como essa é a aplicação de Deus da doutrina da soberania divina, se alguém não prega dessa maneira, ele não crê na doutrina bíblica da soberania divina.

Deus não quebra soberanamente suas próprias promessas. No entanto, o calvinista ou evangélico padrão aplica a doutrina da soberania divina exatamente dessa maneira — ele transforma Deus em um soberano mentiroso, de modo que, independentemente do que Deus prometeu, ela aconteceria somente “se for a vontade de Deus”. A doutrina é que Deus cumprirá soberanamente suas promessas escritas quando ele decidir fazer isso em cada instância. Então esse sujeito ousa acusar o “carismático” por minar a palavra escrita de Deus! Hipócrita! O calvinista ou evangélico padrão, de fato, sabe muito pouco sobre a soberania de Deus. E depois ele acrescenta uma montanha de suas próprias teorias e perversões, além do pouco que ele sabe. Ele aprendeu muito pouco, muito limitadamente, e depois foge do restante da Bíblia pensando que sabe o que precisa saber, e usa o que acha que sabe para atacar os outros. Ele acaba atacando as promessas de Deus, enquanto imagina que está afirmando a natureza e a honra de Deus. Se aplicarmos a doutrina da soberania divina da maneira que Deus o faz, diremos: “Deus é soberano; portanto, mesmo que ele tenha anunciado que você morrerá de sua doença, se orar com fé, ele honrará soberanamente sua palavra e o curará”. Se você tem fé, por que você receberia a cura, mesmo que a circunstância pareça imutavelmente determinada, e mesmo que o próprio Deus declare “Você vai morrer” e “Você não se recuperará” por uma revelação especial em um nível que poderia ocupar um lugar permanente na Escritura? Como tal coisa poderia acontecer apenas porque você tem fé? Porque Deus é soberano. E minha doutrina da soberania divina é tão forte assim. Eu vou crer que ela é tão forte quanto ele ensina.

A Bíblia é o dedo médio de Deus para o calvinista ou evangélico padrão, ou o cessacionista com sua desculpa da “vontade de Deus”. O próprio Deus quer que saibamos que, mesmo que ele diga na sua cara, pelo superprofeta Isaías nada menos que: “Arrume tudo! Você vai morrer!” — você AINDA pode orar e receber sua cura ou milagre. Imagine o que Calvino teria feito se um anjo lhe dissesse: “Deixe-me ir”? Ele teria obedecido à “vontade de Deus”? Mas Jacó disse: “Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes”. Imagine o que Spurgeon teria feito se Deus tivesse declarado: “Eu os matarei!”. Ele teria se acuado e gritado: “Oh, que seja feita a sua vontade!”? Mas Moisés disse: “Não! Se você fizer isso, o que as pessoas pensariam de você?”. O que seu teólogo favorito teria feito se Jesus lhe dissesse: “Eu não sou enviado a você” e “Não é certo dar a um cão como você o que pertence aos filhos”? Mas uma mulher gentia sem aliança disse: “Mas até os cães podem comer das migalhas”, e ainda recebeu seu milagre de cura. O quê? Jacó e Moisés desafiaram a soberania de Deus? Mas Deus é alguém que pode ser desafiado assim? A mulher perseguiu Jesus e anulou sua decisão? Mas Jesus era alguém que poderia ser intimidado? Ou talvez esse tenha sido o caminho da fé o tempo todo, e aqueles que se consideram mais instruídos nas coisas de Deus são os que menos conhecem o caminho da fé? Se você afirma que seus mestres teriam agido de igual modo, então eu me alegro. Talvez eles teriam, embora eu duvide. Mas ou você admite que seus mestres nunca conheciam o caminho da fé, nesse caso, você deve ajustar sua opinião sobre eles de acordo, ou deve começar a agir de igual modo — no caminho da fé — e receber de Deus, não importa o quê. Qual você escolhe? Ah, você seguirá o terceiro caminho — argumentar e protelar, protestar e adiar, acusar e desculpar.

O que eu teria feito? Bem, o que eu fiz várias vezes? Meu contrato com Deus diz que a cura me pertence, então a cura me pertence. Esta é a palavra final. E há muitas outras coisas no contrato. Mesmo que eu não tivesse nenhum contrato com Deus, como a mulher gentia que implorou a Jesus em favor da sua filha, eu ainda o alcançarei pela fé, pois Deus fez um contrato permanente com a fé. Esse aspecto de Deus é o que calvinistas, evangélicos e cessacionistas nunca conheceram, e que eles perseguiriam nos outros, mesmo que seja o evangelho. Pessoas como Jacó e Moisés não acreditavam na soberania de Deus? Claro que acreditavam. Eu não acredito? Claro que acredito. O problema é que os calvinistas, os evangélicos e os cessacionistas se apegam a uma coisa sobre a palavra de Deus, distorcem-na e a adotam como sua, e depois interpretam toda a palavra de Deus por ela, mesmo que deva anular todo o restante da palavra de Deus no processo. Mas esta é a mesma coisa que os arminianos fazem, e a mesma coisa que os teístas abertos fazem, mas eles se aproveitam de outras coisas que pensam ver na palavra de Deus como princípios controladores.

Eles afirmam considerar a Escritura como a própria palavra de Deus e acusam os “carismáticos” por buscar revelações extras, mesmo que os carismáticos busquem as mesmas coisas prometidas na Escritura. Em qualquer caso, eles afirmam considerar a Escritura como a palavra de Deus, mas depois aceitam as circunstâncias e os resultados como a vontade de Deus. Em vez de se apegar ao que Deus ordenou e prometeu como a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Romanos 12:2), eles aceitam o que acontece como vontade de Deus. Se eles oram de acordo com uma promessa de Deus e recebem um resultado diferente, tomam isso como vontade de Deus, quando devem insistir em obter o que Deus já disse. Portanto, independentemente do que eles reivindicam sobre si mesmos, na prática eles são aqueles que mostram menos respeito pela Escritura em todas as escolas de pensamento religioso, ainda menos respeito do que alguns pagãos que não têm aliança. Eles parecem ainda piores à luz do fato de terem mais vantagens do que Ezequias, que estava muito doente, que teve sua morte anunciada por alguém não menos que Isaías, que teve acesso a uma fração dos escritos sagrados disponíveis para nós, que viveu antes do tempo de Cristo, e que não podia usar o nome de Jesus ou o poder do Espírito. Este Ezequias ainda recebeu sua cura. Esses cristãos não recebem nada e perseguem aqueles que tentam. É um total, completo, definitivo fracasso de fé.

Há uma aplicação da profecia que não levarei tempo para discutir. É o fato de que o que parece ser uma profecia falha nem sempre é uma profecia falsa. Como no caso de Isaías, uma profecia pode ser verdadeira no momento e no contexto em que é dada, mas então algo muda, às vezes em resposta à profecia, de modo que a profecia não se aplica mais. A profecia deve ser julgada, e não devemos desculpar uma falsa profecia. No entanto, se alguém desconhece os princípios básicos da profecia e como Deus interage com os homens, como ele está qualificado para julgar a profecia, dizer alguma coisa ou criticar alguém? Ele espera que imponham responsabilidade àqueles que profetizam, mas não impõem responsabilidade àquele que julga a profecia, ou mesmo que rejeita toda a prática da profecia? Ele quer bancar o especialista, mas está tão atrasado nas coisas espirituais que nem consegue ver a linha de partida de onde está. Ele quer ensinar as pessoas, corrigi-las e refutar os fanáticos. Mas ele não sabe nada sobre a soberania de Deus, e não sabe nada sobre cura, e não sabe nada sobre profecia. Para nós, ele é apenas um palhaço espiritual. Ele é apenas um estúpido, dançando estupidamente, fazendo barulhos engraçados.

Vamos concluir com um ponto crucial. A Bíblia usa a soberania de Deus para explicar por que algumas pessoas não podem crer no evangelho e, portanto, não podem receber a promessa de Deus (João 6:44, 65, 10:26, Romanos 9:18). Elas estão condenadas e não serão salvas. A Bíblia nunca usa a soberania de Deus para afirmar que algumas pessoas podem crer na promessa e ainda assim não podem receber por causa da vontade de Deus. Portanto, quanto mais alguém afirma que não recebe a promessa de Deus por causa da vontade de Deus, mais ele insiste que é réprobo, criado para condenação e reservado para tortura eterna no fogo do inferno. A doutrina dele não é a voz de Cristo, mas o grito de Satanás.

Do: e-mail

Vincent Cheung. The Screech of Satan. Disponível em Fulcrum (2017), pp. 74–77. Tradução: Luan Tavares (08/12/2019).

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Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos. “Tudo é possível ao que crê.” (Marcos 9:23)

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