Mas e a Rebimboca da Parafuseta?

As Obras de Vincent Cheung
7 min readNov 11, 2019

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Suponha que eu queira que você faça algum trabalho duro para mim. Você pergunta: “Qual é o pagamento?”, e eu respondo: “O pagamento verdadeiro consiste em amigos, felicidade e uma vida longa. Se você trabalhar para mim, eu me tornarei seu amigo. Você ficará feliz por me ajudar. E o trabalho envolve muito levantamento de peso, então será um bom exercício e contribuirá para uma vida longa”. Você está convencido? Ou você acha que estou evitando sua pergunta? Minha resposta pode ter algum valor em outro contexto, mas não é relevante para sua preocupação. Em vez disso, estou impondo outro significado a um termo-chave, e estou abordando esse significado em vez daquele. Você pensaria que eu sou estúpido ou caloteiro.

Quando você pergunta sobre o pagamento, você está se referindo ao dinheiro, à quantia de dólares que irá transferir da minha conta para a sua. Sua preocupação não tem nada a ver com as verdadeiras riquezas ou com o significado mais profundo da vida. O significado do termo é fixado em sua pergunta e, mesmo que o dicionário liste várias outras definições, apenas uma é relevante neste contexto, e é essa que você está usando. Ora, minha resposta parece ridícula: “Os verdadeiros dólares americanos consistem em amigos, felicidade e uma vida longa”. Isso é obviamente irrelevante. A verdadeira resposta é: “Não, eu não vou lhe pagar”.

Quando a mesma palavra é usada com dois significados diferentes, uma ou ambas as palavras podem ser substituídas, seja com palavras diferentes, seja com expressões que representam os significados que essas palavras pretendem transmitir. Podemos reproduzir o diálogo desta maneira: “Qual é a quantia de dólares que você me dará?” “Eu lhe darei $0. No entanto, você receberá um tipo diferente de recompensa que consiste em amigos, felicidade e uma vida longa”. Em outras palavras, quando X é usado de duas maneiras, é sempre possível declarar o assunto em termos de Y e Z. Isso é muito mais claro, mas colocar o assunto dessa maneira me leva a admitir o fato de que não lhe darei nada, embora eu possa tentar convencê-lo a trabalhar para mim de qualquer maneira, oferecendo outro tipo de motivação. Isso torna minha posição mais honesta.

Agora, considere algo que lemos da Teologia Sistemática de Louis Berkhof. Ele escreve: “Dizem que a doutrina da perseverança é incoerente com a liberdade humana. Mas esta objeção parte da falsa pressuposição de que a verdadeira liberdade consiste na liberdade da indiferença, ou no poder de fazer escolha contrária em questões morais e espirituais. Contudo, isto é errôneo. A verdadeira liberdade consiste exatamente na autodeterminação rumo à santidade. O homem nunca é mais livre do que quando se move conscientemente em direção a Deus. E o cristão está com essa liberdade pela graça de Deus”.

Percebe que ele parece dizer algo valioso, mas evita a objeção? Esta é uma maneira típica do pensamento reformado. Eu escolhi este exemplo porque me deparei com ele na minha mesa, mas há milhares como este nos escritos reformados, e seria fácil encontrar o seu próprio exemplo e fazer sua própria análise. Em qualquer caso, a resposta de Berkhof é: “O que você chama de X, eu não quero dizer Y, mas quero dizer Z”. Tudo bem, mas e quanto a Y? A objeção é que X é inconsistente com Y, e Berkhof ignora isso. E se o oponente afirma que Y é essencial, sem o qual um sistema de teologia não pode se sustentar, a defesa de Berkhof é um completo fracasso. O oponente diz: “Se Deus é soberano, então o homem não tem rebimboca da parafuseta”. A resposta reformada é: “A verdadeira liberdade é a autodeterminação”. Mas a objeção se refere à rebimboca da parafuseta. Assim como tentei induzi-lo a trabalhar para mim sem pagamento, a resposta reformada é uma farsa.

Isso nos prepara para examinar o conteúdo real da objeção. Liberdade é um termo relativo — uma pessoa é livre de algo. O significado que se pretende com a palavra em um determinado contexto, então, é determinado por aquilo do qual é dito alguém ser livre. Quando o assunto é soberania divina, eleição, regeneração, preservação ou algo parecido — isto é, quando o assunto é o controle de Deus — o contraste relevante, ou aquilo que parece inconsistente, é necessariamente uma liberdade de Deus. Então a pergunta é: “Eu tenho liberdade para pensar, escolher e agir, no sentido de que minha decisão é sempre arbitrária ou que a razão para minha decisão está sempre inteiramente dentro de mim, além da determinação externa, incluindo o decreto e o poder de Deus?”. É improdutivo, e compreensivelmente frustrante para os oponentes, dizer: “Mas isso não é o que a Bíblia quer dizer com liberdade”. Chame-a do que quiser, mas é isso que nossos oponentes estão perguntando. Retire a palavra liberdade, mas você ainda precisa responder à pergunta.

Isso é importante porque a liberdade, nesse sentido bastante forte, é o que nossos oponentes se referem quando usam o termo, e o consideram o fundamento necessário para a responsabilidade moral. Redefinir a liberdade para eles não responde à pergunta. A resposta típica é o compatibilismo, ou que o homem tem o poder de autodeterminação. Ele sempre decide de acordo com seu próprio desejo sem coerção. Os reformados negam a ideia que seus oponentes têm de liberdade, dizendo que ela é equivocada e impossível, e oferecem a eles essa versão como base para a responsabilidade moral.

No entanto, até mesmo um computador tem esse tipo de liberdade — ele sempre funciona de acordo com seu programa e nunca é coagido. Mas o homem é quem escreve o programa, e quem desenvolve o hardware para que o computador funcione de acordo com um programa. Nossos oponentes estão perguntando se o computador pode funcionar sem qualquer programação, ou se pode criar sua própria programação, ou operar além ou mesmo contra sua programação. Para eles, a resposta reformada equivale a dizer que, se um computador roda um vírus, podemos acusá-lo de um crime cibernético. O pensamento deles é que, se um homem escreve o vírus, e o computador apenas o executa, então é o homem que deve ser acusado do crime. O computador só pode ser responsabilizado se ele gravar o vírus sozinho ou se executar o mesmo dano sem um vírus. Se estamos falando sobre soberania divina, então a liberdade deve ser definida dessa maneira — uma liberdade relativa ao controle divino. E se essa liberdade é o fundamento necessário para a responsabilidade moral, então nossos oponentes estão corretos. Ou Deus não pode ser soberano, ou o homem não pode ser responsável. A resposta reformada é um fracasso e um embaraço total.

Se você replica que um homem não é como um computador em muitos aspectos, eu concordo. Mas tenha cuidado com isso, pois pode não seguir uma direção que você espera. Um homem pode programar o computador, mas ele não controla muitas coisas sobre ele. Ele não criou os materiais que constituem o computador e não controla a eletricidade e muitas outras coisas necessárias para sua operação. Se um homem é maior que um computador, então Deus é infinitamente maior que um programador. Portanto, essa réplica apenas enfatiza o controle de Deus sobre o homem. A analogia de fato se desfaz, mas não em favor dos reformados ou de seus oponentes.

O mesmo se aplica quando se pergunta se Adão tinha liberdade antes de cair no pecado. Responder com a doutrina do compatibilismo ou do esquema dos “quatro estados do homem” é fugir do assunto. Se Adão era livre do pecado para se abster do pecado é secundário. Os oponentes estão perguntando se Adão era livre de Deus para se abster do pecado. Se ele era livre de Deus, então como Deus é soberano? Se Adão não era livre de Deus, então por que ele era responsável? Se Deus criou Adão justo e Adão agiu de acordo com sua própria natureza, então como foi possível a queda? Quanto a isso, os oponentes estão completamente certos, e os reformados estão completamente errados.

A resposta correta é simples: 1. Afirme a soberania divina e que ela é exaustiva, estendendo-se a todas as coisas, até mesmo aos pensamentos, motivos, desejos e ações dos homens; 2. Negue a liberdade humana e admita que ela é de fato inconsistente e excluída pela soberania divina; 3. Negue que a liberdade humana é o fundamento necessário para a responsabilidade moral; 4. Afirme que a soberania divina é o verdadeiro fundamento para a responsabilidade moral; isto é, os homens são responsáveis ​​porque Deus os responsabiliza, e ele não requer autorização para isso, a não ser sua natureza e sua vontade; e 5. Afirme que a própria definição de justiça é dada pela natureza, decreto e ação de Deus, de modo que tudo o que ele decide e causa é, por definição, de acordo com a justiça; isto é, ele está sempre de acordo consigo mesmo.

Isso confronta diretamente a ideia de liberdade como definida pelos oponentes da soberania divina, e em vez de mudar essa liberdade com outra coisa, a nega categoricamente. E então confronta sua preocupação mais profunda, que é a responsabilidade moral, e aponta que sua suposição — que a responsabilidade pressupõe liberdade, liberdade diante de Deus em qualquer sentido e por qualquer definição — é arbitrária e injustificada, e contrária à Escritura e à razão.

Precisamos realmente de milhares de páginas escritas ao longo de centenas de anos para resolver isso? A relação de meu computador com sua programação é moralmente irrelevante. Ele é minha propriedade. Eu posso usar meu laptop como um Frisbee se eu quiser. Como proprietário, é meu direito fazer o que quiser com ele. Assim Deus é o oleiro que, da mesma massa, faz alguns vasos para uso honroso e alguns vasos para uso desonroso. E ninguém pode dizer-lhe: “Por que você me fez assim?”. Esse é o resumo da teologia e o fim da questão.

Vincent Cheung. But What About the Thingamajig? Sermonettes — Volume 2 (2010), pp. 80–82. Tradução: Luan Tavares (11/11/2018).

Sobre o autor: Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos.
Site oficial: https://www.vincentcheung.com/

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Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos. “Tudo é possível ao que crê.” (Marcos 9:23)

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