João 3:16
Extraído de “Born Again” (2006).
João 3:16 é um dos versículos mais famosos da Bíblia. É tão familiar que muitas pessoas não têm ideia do que ele diz, do que ele significa e do que ele implica. Assim também é um dos versículos mais frequentemente distorcidos na Escritura. Essas interpretações são perigosas não apenas porque afirmam falsas ideias, mas também porque obscurecem o que o versículo pretende transmitir, neutralizando sua força original. Grandes crimes foram cometidos contra João 3:16, e por isso seria apropriado que levemos algum tempo para dissecá-lo. Mas primeiro, vamos lê-lo novamente, mesmo que tenhamos lido muitas vezes antes: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”.
A expiação já é aludida no versículo 15, quando é dito que “é necessário que o Filho do homem seja levantado”. Quando o versículo 16 diz: “Porque Deus tanto amou o mundo” é uma revelação da própria mente de Deus, dizendo-nos por que ele envia Jesus Cristo para morrer pelos pecadores. Ele envia Jesus para sofrer a dor e humilhação da encarnação, perseguição e crucificação por causa do amor — porque ele ama aqueles a quem ele deseja salvar da destruição e punição eterna.
É comum as pessoas imporem suas próprias ideias humanas, e até mesmo pecaminosas, sobre o amor em lugares onde a Escritura se refere ao amor de Deus. As heresias e libertinagem resultantes revelaram-se devastadoras para a verdadeira religião. Várias doutrinas bíblicas centrais são subvertidas e uma mensagem confusa sobre a natureza de Deus, suas exigências e sua solução têm sido anunciadas ao mundo.
O amor de Deus não é um sentimento, mas é uma política de benevolência que resulta em ações realizadas em benefício daqueles que são objeto desse amor. Esse amor não é promíscuo, mas específico e eficaz. Ele atinge conscientemente indivíduos escolhidos e realiza com sucesso os atos de benevolência que se propõe a fazer. Como Deus diz a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (Romanos 9:15), e Paulo afirma: “Portanto, Deus tem misericórdia de quem ele quer e endurece a quem ele quer” (v. 18). E também está escrito: “Amei Jacó, mas rejeitei Esaú” (v. 13).
Que Deus envia seu Filho por amor nos lembra da harmonia dentro da Divindade. O Filho não vem do céu contra ou independente da vontade do Pai, mas é o amor do Pai que o envia em primeiro lugar. Portanto, na expiação, Cristo não se oferece como sacrifício para apaziguar a ira de um Deus relutante. Pelo contrário, a expiação é o caminho de Deus para salvar aqueles que ele ama, mas ao mesmo tempo apaziguar sua própria ira e satisfazer sua própria justiça.
O fundamento da nossa salvação é o amor de Deus por nós. Outra implicação deste fato é que Deus não é movido por qualquer fé ou mérito que ele prevê em nós. Nem há nada que merecedor em nós que o faça nos amar. Seu amor nunca é separado da sua vontade, de modo que ele não nos ama porque é subjugado por nossa bondade ou potencial, mas nos ama porque escolhe nos amar.
O versículo diz que Deus ama “o mundo”, e isso se refere ao objeto e ao escopo de seu amor. Assim, essa expressão contribui para a bela imagem que João está pintando para nós sobre o plano de redenção de Deus. No entanto, neste ponto, muitas pessoas começam a distorcer o texto para servir seu próprio preconceito teológico e preconceito humanista. A distorção foi tão enfatizada e promovida que se tornou a visão da maioria. Portanto, dedicaremos parte deste capítulo para lidar com isso.
Há aqueles que insistem que “o mundo” aqui deve se referir a toda pessoa humana em toda a história da humanidade, isto é, todo indivíduo em todo o tempo. Aqueles que, como eu, não concordam com essa interpretação, mas que apontam que há um contexto para o uso que João faz do termo que restringe seu escopo, às vezes são acusados de se recusar a aceitar o ensino claro do versículo.
Ora, se “o mundo” realmente se refere a toda pessoa humana na história, então o versículo estaria dizendo que Deus ama a todos, e que ele ama a todos com um amor salvador que envia Jesus Cristo para morrer por cada pessoa humana. Portanto, da perspectiva de Deus, ele fez tudo o que pôde para assegurar uma salvação potencial para cada pessoa. A salvação depende agora da pessoa, da sua própria liberdade de escolha e não mais de Deus. Se é isso que o texto afirma e implica, então devemos nos submeter a ele. Mas, como explicarei, essa interpretação não é apenas falsa, mas é também irreverente.
Quando nos opomos ao entendimento acima da palavra “mundo”, somos informados de que, se o texto diz “mundo”, devemos aceitar que ele quer dizer “mundo”. Eu não tenho nenhum problema com isso, mas a minha pergunta é o que “mundo” significa. Nossos adversários fazem um ponto semelhante em lugares onde a Bíblia usa palavras como “qualquer um”, “todo mundo”, “todos” e assim por diante. Eles ignoram o fato de que essas palavras aparecem em contextos específicos que definem seu significado e restringem seu escopo. Primeiro ilustrarei esse ponto a partir do uso geral da linguagem e, depois, de várias passagens bíblicas.
Primeiro, é verdade que devemos aceitar o que está escrito exatamente como está escrito. Mas o que está escrito é sempre escrito dentro de um contexto. Quando aceitamos “o que está escrito”, devemos aceitar tudo o que está escrito, isto é, junto com o contexto das palavras e frases específicas que estamos focalizando.
Se eu fosse escrever “Eu nego que eu sou uma mulher”, então você pegar apenas “eu sou uma mulher” e dizer que devemos aceitar apenas “o que está escrito”, é de fato rejeitar o que está escrito. Nesse caso, sua representação “do que está escrito” seria exatamente o oposto do que está realmente escrito.
Isso é tão simples que parece que estou insultando meus leitores, mas é precisamente esse princípio muito simples que nossos oponentes se recusam a implementar quando leem a Bíblia. É claro que devemos aceitar as declarações claras da Escritura, mas quais são essas afirmações claras? Nossos oponentes diriam que eu escrevi claramente “Eu sou uma mulher” e é claro que eu escrevi. Mas isso é algo que “eu nego”.
Quanto a esses termos aparentemente universais como “qualquer um”, “todo mundo”, “todos” e assim por diante, eles são de fato universais nos contextos em que são usados, mas nem sempre são absolutamente universais. Se você me dissesse, independente de qualquer contexto declarado ou assumido, que qualquer um pode aprender cha-cha-chá, eu responderia: “Sim, e eu gostaria que você ensinasse um panda a fazer isso”. Você voltaria e me diria que você quer dizer que qualquer ser humano pode fazer isso. Mas então eu perguntaria: “E alguém que está em coma? E uma pessoa aleijada? E um bebê recém-nascido pode aprender cha-cha-chá?”.
O ponto é que o contexto define e restringe um termo aparentemente universal. Certamente nossos oponentes percebem que as palavras “Deus amou o mundo” estão cercadas por outras palavras, e que a passagem inteira aparece no texto muito maior do Evangelho de João? Qual então é esse contexto? E por que esse contexto apóia a interpretação deles? Qual é a teologia de João? E como isso implica a compreensão deles da palavra “mundo” como é usada em João 3:16?
Vamos pegar vários exemplos da Bíblia. O primeiro apenas ilustrará a necessidade de contexto, e eu escolhi deliberadamente algo que não tem relevância imediata para o nosso versículo. O exemplo é Êxodo 20:13 e ali Deus declara: “Não matarás”. Mas o que não devemos matar? Sim, humanos. Mas e os vegetais? E as bactérias? Estas não são perguntas ridículas, pois uma vez que o contexto é ignorado, estas são de fato possibilidades.
Assim como com João 3:16, esse versículo tem sido sujeito a muitos abusos, e o que geralmente acontece é que um contexto, que define e restringe o significado, é imposto ao texto na mente do leitor sem considerar o contexto real em que o versículo aparece. É por isso que algumas pessoas pensam que podem usar este versículo para se opor à pena de morte, enquanto outras partes da Bíblia explicitamente o ordenam. Outros afirmam que este mandamento nos proibiria de comer carne, enquanto a Bíblia explicitamente o permite em outro lugar. Mas se não podemos comer carne porque não podemos “matar”, e a matança aqui de alguma forma inclui animais, então como os vegetais e as bactérias não estão sob a mesma proteção?
Naturalmente, o mandamento é mais corretamente traduzido “Não assassinarás” (Êxodo 20:13 NVI), mas ainda precisamos do contexto mais amplo da Escritura para definir assassinato, uma vez que alguns defensores sugerem que é assassinato executar um criminoso, e que é assassinato matar uma galinha. Mas de alguma forma, é permitido assassinar vegetais e bactérias.
Agora vamos a um exemplo mais relevante, pelo menos em termos da expressão usada. Lemos em João 12:18-19: “Muitas pessoas, por terem ouvido falar que ele realizara tal sinal milagroso, foram ao seu encontro. E assim os fariseus disseram uns aos outros: ‘Não conseguimos nada. Olhem como o mundo todo vai atrás dele!’”.
Os fariseus lamentam que “o mundo todo” tenha ido atrás de Jesus. Se fôssemos interpretar a Escritura como nossos oponentes, devemos concluir que todos os seres humanos em toda a história se tornaram cristãos. A obra de evangelização está terminada e o inferno está completamente vazio, exceto pelo diabo e seus anjos. E agora que pensamos nisso, por que o diabo e seus anjos são excluídos do “mundo todo”, a menos que a Escritura forneça um contexto para justificar essa exclusão? Além disso, se esquecermos os demônios por enquanto, se “o mundo todo” deve significar toda pessoa humana, então os fariseus que proferiram essa declaração devem ter “ido atrás” de Jesus. Isso faria com que sua exclamação não fosse uma queixa, mas uma alegre observação!
Se nossos oponentes não adotam essa interpretação absurda, é porque eles estão assumindo um contexto que é diferente daquele que eles usam quando leem João 3:16. Apenas lendo os versículos ao redor, fica claro que “o mundo todo” do versículo 19 refere-se às “muitas pessoas” do versículo 18, e talvez também “a multidão” do versículo 17. Se “o mundo todo” não automaticamente e necessariamente significa todo ser humano na história, então nem nós podemos simplesmente assumir quando se trata do “mundo” em João 3:16.
Há muitos outros exemplos na Bíblia, mas vamos examinar apenas mais um. Apenas alguns versículos depois de João 3:16, encontramos o seguinte: “Ele testifica o que tem visto e ouvido, mas ninguém aceita o seu testemunho” (3:32). Ninguém, diz o versículo, aceita o testemunho de Cristo. Desta vez, se interpretássemos a Escritura como nossos oponentes, teríamos que concluir que “ninguém” em toda a história humana creu ou jamais crerá em Cristo. Nunca houve e nunca haverá um cristão em toda a história humana.
E se “ninguém” deve significar todo ser humano sem restrição e sem exceção, então deve significar que, mesmo enquanto escreve este versículo, o próprio apóstolo João não aceitou o testemunho de Cristo. É realmente estranho, então, como ele encoraja repetidamente seus leitores a crer em um testemunho que ele rejeitou. Além disso, o modo como nossos oponentes interpretariam esse versículo — isto é, se imitarmos o tratamento dado a João 3:16 — faria João 3:32 contradizer João 12:19. O primeiro faria a evangelização mundial fútil, mas o último diria que a missão já foi cumprida.
Se eu fosse ignorar o contexto de tudo o que você diz e usar todos os termos universais que você usa como se referissem a todo ser humano em toda a história, eu faria sua parte da sua conversa virar bobagens, e a comunicação seria impossível. Além disso, você poderia acertadamente me acusar de desrespeito flagrante com seu discurso e sua pessoa. Você pode até pensar que estou fazendo isso com o propósito de zombar de você ou irritá-lo.
Da mesma forma, nossos oponentes presumem que “mundo” em João 3:16 deve significar todas as pessoas em toda a história, e nos acusam de rejeitar aceitar o versículo exatamente como está escrito, mas são eles que mostram desprezo por Deus e pela Escritura. Em essência, eles aceitam apenas uma palavra do texto e, em seguida, assumem o significado que desejam para ela sem qualquer consideração pelo contexto. Por outro lado, pedimos inteligência na interpretação, respeito pelo texto e reverência para com Deus, observando o contexto do versículo, incluindo como todos esses termos universais são usados ao longo dos escritos de João, bem como as principais preocupações teológicas de o apóstolo.
A controvérsia com a qual estamos lidando tem a ver com as doutrinas bíblicas da eleição divina e da expiação definida. Por ter abordado essas doutrinas em outros lugares com grande detalhe[19], não as discutirei aqui. Estou mencionando isso apenas para salientar que o versículo não prova nem refuta essas doutrinas. Mesmo que o versículo tenha alguma relevância para essas doutrinas, o foco está em outra coisa.
João está neutralizando a ideia de que a salvação é exclusiva ou principalmente reservada aos judeus, ou aos descendentes naturais de Abraão. Ele trabalhou para construir este ponto desde o início, e em todo o seu Evangelho há comentários, discursos, milagres e outros episódios para reforçar repetidamente o ensino. João 3:16 não afirma nem nega que Cristo veio para morrer por todo indivíduo[20]. A questão está resolvida em muitos lugares na Escritura, mas não aqui. Seja qual for o lado em que estamos, se isso se tornou nosso foco quando estudamos o versículo, então perdemos uma de suas principais preocupações.
João está enfatizando a natureza transracial, transcultural e transnacional da salvação em Cristo (1:13, 4:4–42, 8:31–47, 10:16). Junto com outros escritores do Novo Testamento, João está ansioso para anunciar que aqueles que receberão a vida eterna consistirão de “uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Apocalipse 7:9). Eu fico profundamente indignado com o fato de que alguém deve ser desviado de refletir sobre esse aspecto das boas novas por causa dos abusos incompetentes, desonestos e irreverentes que nossos oponentes constantemente infligem a esta e outras passagens bíblicas.
Podemos reforçar nosso ponto com outro exemplo. João 12:32 diz: “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”. A palavra “atrair” refere-se a uma ação poderosa e eficaz de Deus pela qual ele interiormente leva a pessoa a vir a Cristo. Se “todos” deve significar todas as pessoas em toda a história, então isso deve significar que todas as pessoas em toda a história se tornarão cristãs, ou pelo menos todos aqueles que vivem depois de Cristo ter sido “levantado”. Mas então essa promessa ou previsão teria falhado antes mesmo de Atos dos Apóstolos.
E mesmo se enfraquecêssemos o verbo “atrair” para algo como um empurrãozinho, é duvidoso que todas as pessoas após a crucificação tenham sido empurradas para vir a Cristo, como muitos morreram nunca tendo ouvido falar dele, e muitos que têm ouvidos foram repelidos pela mensagem da cruz. Adicione a isso o fato de que Deus deliberadamente impede a compreensão e o arrependimento de muitos, e até mesmo endurece seus corações (Romanos 9:18, 11:7), é impossível interpretar “todos” aqui como se referindo a todas as pessoas em toda a história, ou mesmo em todos os anos após a crucificação.
O significado do versículo é claro se demonstrarmos um pouco de respeito a Deus e à Escritura, e não abusarmos do texto como fazem nossos oponentes. Apenas alguns versículos anteriores (vv. 20–22), João escreve que alguns gregos expressaram um interesse em ver Jesus. Isso fornece o contexto para nós entendermos o “todos”, que Jesus está novamente se referindo ao fato de que o evangelho transcenderá as fronteiras raciais, culturais e nacionais para alcançar todos os tipos de pessoas.
Isto é repetido especialmente para contrariar a noção teimosa de que os judeus têm automaticamente direito à salvação só porque são descendentes naturais de Abraão. Esta é a mensagem consistente e enfática de João e outros escritores do Novo Testamento. Mateus, por exemplo, cita Jesus dizendo: “Eu digo que muitos virão do oriente e do ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no Reino dos céus” (Mateus 8:11).
Quando Jesus diz: “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”, ele está prenunciando seu mandamento mais tarde para os discípulos a não pregar apenas para o povo de Israel (Mateus 10:5-6), mas para “fazer discípulos de todas as nações” (Mateus 28:19). Como ele diz em Lucas 24:46–47: “Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém”. Esta é apenas outra maneira de dizer o que encontramos em João 12:32. Primeiro, Cristo “sofrerá” (“eu, quando for levantado”) e então o evangelho será pregado “a todas as nações” (“atrairei todos”).
Esta comissão para realizar o ministério no mundo inteiro é repetida em Atos 1:8, e seu cumprimento começou apenas alguns dias depois, em Atos 2, antes mesmo que os discípulos serem dispersos de Jerusalém. “Judeus, devotos a Deus, vindos de todas as nações do mundo” (v. 5) reunidos ali no dia de Pentecostes. Sob a pregação de Pedro, milhares deles creram (v. 41), assumimos que eles trouxeram o evangelho de volta para onde eles viviam.
Podemos fazer nosso ponto ainda de outra maneira a partir de Atos 2, uma vez que Pedro cita a profecia de Joel, dizendo: “Nos últimos dias, diz Deus, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos” (v. 17). Novamente, isso não pode se referir a todos os indivíduos humanos sem exceção, mas consistente com o que é obviamente um dos principais impulsos de Atos 1 e 2, o termo refere-se a pessoas de “todas as nações” (v. 5). Como Pedro diz no versículo 39: “Pois a promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar”.
A salvação é de fato para “todos”, mas para todos quem? Pedro diz que é “para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar”. Deus é aquele que escolhe aqueles que seriam salvos — na verdade ele salvará todos aqueles a quem ele escolheu, e ele não escolheu todo indivíduo na história do homem, mas pessoas de todas as nações, mesmo aquelas que estão longe, até mesmo como “os confins da terra” (1:8). Ao estender os termos universais para incluir todas as pessoas, nossos oponentes distorceram todos esses versículos e obscureceram sua importante mensagem.
Então, também é provável que João esteja usando a palavra “mundo” em João 3:16 para denotar uma humanidade que é hostil a Deus, de modo que ele ama até mesmo aqueles que agora se opõem a ele, e ele envia Cristo para salvá-los. Isto é consistente com o que João ensina em outro lugar, como quando ele escreve em 1 João 4:10: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (veja também o v. 19).
A mesma ideia aparece em Paulo, que escreve: “Anteriormente, todos nós também vivíamos entre eles, satisfazendo as vontades da nossa carne, seguindo os seus desejos e pensamentos. Como os outros, éramos por natureza merecedores da ira. Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos vida com Cristo quando ainda estávamos mortos em transgressões — pela graça vocês são salvos” (Efésios 2:3–5). Novamente, esse pode ter sido o significado de João que não prova nem refuta as doutrinas da eleição divina e da expiação definida. O versículo não trata diretamente delas.[21]
O amor de Deus é demonstrado em ação efetiva. Com o propósito de salvar aqueles a quem ele ama, Deus envia seu Filho. O versículo 16 em si não nos diz a relevância de Deus enviar seu Filho ou o que ele envia ao Filho para realizar. Apenas nos diz que, porque ele foi dado, aqueles que creem nele não pereceriam, mas teriam a vida eterna. Isso porque o versículo 15 já nos informou sobre sua missão e como ela se relaciona com a salvação dos homens. Diz que Cristo seria levantado para que aqueles que cressem tivessem a vida eterna. O versículo 16, então, nos diz o que está por trás dessa missão — Deus enviou seu Filho porque ele ama aqueles a quem ele deseja salvar.
Nós estamos tão familiarizados com o versículo que poderíamos não perceber, mas este versículo nos diz algo que seria impossível para nós conhecermos senão pela autorrevelação de Deus. Como Paulo escreve: “Pois quem conhece os pensamentos do homem, a não ser o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, ninguém conhece os pensamentos de Deus, a não ser o Espírito de Deus. Nós, porém, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito procedente de Deus, para que entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente” (1 Coríntios 2:11-12). Portanto, devemos considerar um dom especial saber que Deus enviou o seu Filho, mas que ele o enviou por amor.
Deus deu algo especial, algo único, algo precioso, até mesmo seu Filho, para salvar aqueles a quem ele ama. Isso não apenas nos diz sobre a extensão e intensidade do amor de Deus por aqueles que ele salva, mas também nos ensina que até mesmo seu grande amor não cega ou anula sua justiça. Pelo contrário, seu amor satisfaz sua justiça. Por outro lado, também percebemos o que é necessário para satisfazer essa justiça e a ira divina que nossos pecados incorreram. E se isto é o que é preciso para satisfazer a justiça, podemos ter certeza de que essa mesma justiça não permitirá que ninguém que rejeita a pessoa e a obra de Jesus Cristo escape do fogo do inferno
Nós preferiríamos nos deleitar mais no amor e na justiça de Deus, e na perfeita harmonia entre os dois, mas precisamos ter tempo para lidar com nossos oponentes mais uma vez, enquanto eles manipulam a próxima frase para servir a sua própria tendência. João escreve que Deus enviou seu Filho por amor, para que “todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”. Nossos oponentes diferem em ênfase, mas juntos, inferiram do texto vários ensinos não bíblicos, ou melhor, alegaram apoio a ensinos não bíblicos que eles já afirmam.
Primeiro, juntamente com a falsa interpretação deles de “mundo”, o termo encontrado anteriormente no versículo, eles agora inferem a partir de “todo o que crê” que Deus ama todas as pessoas da mesma maneira, e que Cristo morreu e fez expiação por todas as pessoas. Como já provei a doutrina bíblica de uma expiação efetiva específica em outro lugar, não repetirei os argumentos aqui, pois o tópico não é a principal preocupação desse versículo. Em vez disso, vou apenas apontar como a doutrina antibíblica da expiação universal não pode ser inferida a partir dele.
Segundo, é sugerido que dizer “todo o que nele crer não pereça” implica que, como Cristo já realizou sua obra de expiação, a salvação de cada indivíduo depende agora da livre escolha da pessoa. Uma implicação relacionada é que a pessoa é capaz de fazer tal escolha livre. Novamente, como eu também refutei a liberdade humana em outros lugares, aqui apenas mostrarei como é impossível inferir liberdade e habilidade humanas a partir deste versículo.
Ambos os itens podem ser resolvidos rapidamente. Primeiro, a linguagem em si não garante as inferências feitas. Eu posso dizer: “Todo aquele que se torna um peixe pode respirar debaixo d’água”. A afirmação é verdadeira, mas isso não significa que uma pessoa pode se tornar um peixe sempre que desejar. De fato, qualquer inferência sobre a habilidade de alguém é estritamente inválida, uma vez que a declaração não contém nenhuma informação sobre a habilidade, exceto a capacidade do peixe de respirar debaixo d’água. Quer seja ou não possível para uma pessoa se tornar um peixe, não se pode inferir nada dela a partir da afirmação em si, mas ela apenas nos informa sobre o que aconteceria com uma pessoa que se transformasse num peixe.
Além disso, mesmo que seja possível para uma pessoa se tornar um peixe, a declaração não diz nada sobre como isso é possível, ou se está dentro do poder da própria pessoa fazer isso. Deus é certamente capaz de transformar um homem em um peixe, mas um homem “não pode tornar branco ou preto nem um fio de cabelo” (Mateus 5:36). Uma declaração como a que eu fiz não nos diz nada sobre a habilidade de uma pessoa, mas informações sobre habilidade devem ser obtidas em outro lugar.
Sempre que estamos falando de algo que é impossível para o homem — tal como tornar-se num peixe — isso significa que nunca acontecerá, ou que Deus deve fazer isso acontecer pela sua onipotência. Um episódio no ministério de Jesus faz exatamente este ponto:
Então Jesus disse aos discípulos: “Digo a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus. E digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”.
Ao ouvirem isso, os discípulos ficaram perplexos e perguntaram: “Neste caso, quem pode ser salvo?”
Jesus olhou para eles e respondeu: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”. (Mateus 19:23–26)
Só temos tempo para notar o que é relevante para a nossa discussão. Jesus diz claramente que é impossível que tal homem seja salvo, a menos que Deus faça acontecer, já que todas as coisas são possíveis para ele. Mas o que aconteceu com “todo aquele que crê”? Jesus nunca disse que todos podem crer, ou que cabe à pessoa crer, mas somente que quem crer não perece, mas tem a vida eterna. Se essa pessoa em Mateus 19 crê que depende de Deus, não dela, uma vez que somente Deus poderia fazer isso acontecer.
Em qualquer caso, o Evangelho de João se explica sobre este ponto e não nos deixa em suposições. Em João 10:26, Jesus diz: “Vocês não creem, porque não são minhas ovelhas”. Assim, uma pessoa é ovelha de Jesus antes de crer, e é porque ela é ovelha que ela crê. Como alguém se torna ovelha de Jesus? O versículo 29 diz: “Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai”. As ovelhas de Jesus são o que são porque foram dadas a ele pelo Pai, e lembre-se, é por isso que elas creem.
No entanto, de acordo com a teologia de nossos oponentes, decidimos crer livremente e qualquer um pode fazer isso. Aplicando-a a essa passagem, Jesus teria que dizer que somos nós que nos damos a ele e que somos nós que fazemos a nós mesmos suas ovelhas. É desnecessário dizer que isso contradiz João 10 e, portanto, é uma falsa doutrina.
Então, aqui está uma passagem que já citamos em outro contexto, mas é muito relevante para a presente discussão, e assim vamos lê-la novamente:
“Por que a minha linguagem não é clara para vocês? Porque são incapazes de ouvir o que eu digo. Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira. No entanto, vocês não creem em mim, porque digo a verdade! Qual de vocês pode me acusar de algum pecado? Se estou falando a verdade, porque vocês não creem em mim? Aquele que pertence a Deus ouve o que Deus diz. Vocês não o ouvem porque não pertencem a Deus”. (João 8:43–47)
Em concordância com João 10, mas sem as metáforas, esta passagem nos diz que uma pessoa não pode crer em Jesus a menos que ela já “pertença” a Deus.
Então, João 12:38–41 é ainda mais explícito, ou melhor, nos diz algo similar de outro ângulo:
Isso aconteceu para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que disse: “Senhor, quem creu em nossa mensagem, e a quem foi revelado o braço do Senhor?” Por esta razão eles não podiam crer, porque, como disse Isaías noutro lugar: “Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure”. Isaías disse isso porque viu a glória de Jesus e falou sobre ele. Ainda assim, muitos líderes dos judeus creram nele.
Eles não podem crer porque Deus ativamente os impede! Ele impõe cegueira espiritual e morte sobre eles, e ele retém compreensão e arrependimento deles.
Quem, então, é o “todo” em “todo o que nele crer”? É a pessoa a quem Deus soberanamente ama e a quem ele concede compreensão e arrependimento. Em vez de ensinar a liberdade do homem na salvação, o “aquele o que nele crer” em João 3:16 efetivamente exclui toda a humanidade da salvação, exceto para aqueles a quem Deus soberanamente concede fé em Jesus Cristo.
Portanto, uma vez que levamos em consideração todo o Evangelho de João, João 3:16 ensina exatamente o oposto do que nossos oponentes afirmam. Em vez de ensinar a liberdade do homem na salvação, ele a destrói completamente. Se o nosso pensamento é conforme a Escritura, e se falamos como a Escritura fala, encorajar os homens a crer, ter fé não é reconhecer sua liberdade e capacidade espiritual, mas é uma declaração ousada de que os homens não podem salvar a si mesmos.
Dizer que eles precisam de fé é dizer-lhes que “para o homem isto é impossível”. E embora “para Deus todas as coisas sejam possíveis”, ele não faz com que isso ocorra para todos. Além disso, embora seja verdade que eles só podem crer quando Deus concede fé a eles, o que nós estabelecemos é ainda mais forte do que isso — Deus não deve apenas fazer com que eles creiam, mas ele deve primeiro parar de agir contra eles.
O problema é que nossos oponentes não levam em conta o contexto do Evangelho de João. E é por isso que eu os chamo desonestos e irreverentes. Eles têm muito pouco respeito por Deus e pela Escritura para ouvir tudo o que é dito. E se inferirem de uma frase pequena o que não está realmente na frase, então não estão prestando atenção nem mesmo àquelas poucas palavras. Eles estão tentando pegar o que querem ouvir, distorcem-no para se encaixar em suas opiniões, e então fogem com ele e nunca olham para trás.
Aqueles que “pertencem” a Deus, aqueles que Deus já deu a Cristo — “todos os que” são dele, eles certamente virão a Cristo e crerão. E Jesus promete que eles “não perecerão, mas terão a vida eterna” (v. 16). Assim, ele implica que aqueles que não creem perecerão. O versículo 18 confirmará essa inferência, e assim nós mencionaremos isto novamente quando chegarmos lá. Quanto à “vida eterna”, já expusemos sobre isso, ainda que brevemente, e agora devemos seguir em frente.
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[18] Vincent Cheung, Systematic Theology.
[19] Entre outros, veja Vincent Cheung, Systematic Theology e Commentary on Ephesians.
[20] No entanto, não podemos ler o versículo como se fosse neutro sobre esses tópicos. Uma vez que aprendemos os significados bíblicos do amor de Deus, da expiação de Cristo e de outros conceitos empregados na passagem, torna-se óbvio que o versículo é inconsistente com a falsa doutrina da expiação universal.
[21] Morris, Gospel According to John, pp. 111–113.
Vincent Cheung. Born Again (2006), pp. 46–55. Tradução: Luan Tavares (28/02/2019).
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Siglas das versões bíblicas em inglês:
● NIV — New International Version