Blasfêmia e Mistério em Teologia

As Obras de Vincent Cheung
10 min readJan 3, 2021

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Um dos meus leitores teve uma discussão com alguém sobre a relação entre Deus e o mal. A outra pessoa escreveu:

Neste livro How Long, O Lord? Reflections on Suffering and Evil [Ó Senhor, Até Quando? Reflexões sobre o Sofrimento e o Mal], D. A. Carson diz: “É essencial — não posso dizer isso mais fortemente — é absolutamente essencial para o bem-estar doutrinário e espiritual manter as diversas polaridades na natureza de Deus simultaneamente. Por exemplo, caso você trabalhe com as passagens bíblicas que insinuam abertamente que Deus, em certo sentido, está por trás do mal, e não nos chama à mente as incontáveis ​​passagens que insistem que ele é infalivelmente bom, então em um período de sofrimento você pode ser tentado a pensar de Deus como um soberano sanguinário e cruel”.¹ Essa visão permite que o mistério dessa doutrina permaneça em vez de tentar segui-la até o seu fim lógico percebido. Onde a Escritura não vai, não devemos ir também.

INTRODUÇÃO

Carson é também o autor do livro Divine Sovereignty and Human Responsibility: Biblical Perspectives in Tension [Soberania Divina e Responsabilidade Humana: Perspectivas Bíblicas em Tensão].² Em vez de carregar o subtítulo “Doutrinas Bíblicas em Harmonia”, que soaria como algo que eu diria, reforça a suposição cansativa de que a Escritura contém uma “tensão” interna, uma palavra bonita para contradição.

Sobre este tópico, Carson não consegue romper com a tradicional posição antibíblica e irracional e, como resultado, compromete-se a uma posição tão profana e pecaminosa que, se não eu não tivesse o intuito de ensinar, eu dificilmente ousaria repeti-la. Essa pessoa que cita Carson também ecoa alguns slogans tradicionais, então vamos examinar suas declarações também.

Como devemos proceder? Quase todas as cláusulas do parágrafo contêm algumas abominações teológicas. O método mais completo seria uma análise frase por frase, mas também seria ineficiente e repetitivo, já que junto com cada frase, teremos que examinar sua relação com outras frases que vêm antes e depois dela. Em vez disso, examinaremos o parágrafo e destacaremos vários tópicos para discussão.

BLASFÊMIA

Carson escreve que é essencial “manter as diversas polaridades na natureza de Deus”. Para o leitor descuidado que está acostumado a esse tipo de conversa, a declaração parece bastante inocente, e a palavra “polaridades” pode até parecer elegante e fascinante. Mas “polaridades” referem-se a opostos — é isso que a palavra significa. E “diverso” refere-se à variedade ou multiplicidade. Essas palavras são aplicadas à “natureza de Deus”.

Em outras palavras, Carson diz que é “absolutamente essencial” dizer que existem muitos opostos na própria natureza de Deus. Ele não diz muitas facetas, mas muitos opostos. O próprio Satanás dificilmente apareceria com uma blasfêmia pior do que essa. Ela atinge a natureza de Deus e o divide internamente.

Mas isso apenas define o que se segue.

Como um exemplo da necessidade de manter a ideia de opostos na própria natureza de Deus, Carson escreve: “… caso você trabalhe com as passagens bíblicas que insinuam abertamente que Deus, em certo sentido, está por trás do mal, e não nos chama à mente as incontáveis ​​passagens que insistem que ele é infalivelmente bom, então em um período de sofrimento você pode ser tentado a pensar de Deus como um soberano sanguinário e cruel”.

Novamente, para uma pessoa irrefletida que está acostumada a esse tipo de absurdo, isso soa inocente e até mesmo reverente. Mas considere o que ele está dizendo aqui. Tenha em mente que Carson está falando de polaridades — opostos — na própria natureza de Deus. Não há como sair daqui — ele não diz que estas são meras contradições aparentes, o que seria bastante ruim, mas polaridades na natureza de Deus. Então, o que é citado acima oferece um exemplo de uma dessas polaridades. Portanto, de acordo com Carson, o fato de que Deus soberanamente “está por trás do mal” é o oposto de ser “infalivelmente bom”. Em outras palavras, quando Deus “está por trás do mal”, ele é mau ou está fazendo o mal. Se esta não é a implicação, então não há polaridade aqui.

Eu fico perturbado mesmo quando estou apenas apontando o que a declaração de Carson implica, mas parece que muitos cristãos têm orgulho de proclamar essa blasfêmia. E quando alguém pensa assim, não é de admirar que ele seja tentado a considerar Deus “um soberano sanguinário e cruel”. Carson sugere que também devemos nos lembrar de que Deus é infalivelmente bom. No entanto, se Deus é bom quando ele soberanamente “está por trás do mal”, então onde está a polaridade? E se a polaridade é mantida, então deve significar que ele é mau naqueles momentos em que ele soberanamente está atrás do mal, enquanto ele é bom em todos os outros momentos. Mas se sim, então como ele é infalivelmente bom?

E que tipo de pessoa pensaria que Deus é um “soberano sanguinário e cruel” quando lê os relatos bíblicos da soberania de Deus sobre o mal? A própria Bíblia sugere essa ideia? Se a Bíblia não sugere isso, de onde vem? Um padrão não bíblico tem sido usado para julgar o controle soberano de Deus sobre o mal. A falsa noção não é inerente às passagens bíblicas. E se não é inerente a estas passagens, então nenhuma polaridade é necessária para equilibrá-la.

Contra Carson, a posição bíblica é que Deus é bom por definição e é o único padrão de bondade. Não é nada menos do que uma rebelião descarada trazer um padrão antibíblico de bondade e ver se Deus está à altura dele, dizendo que ele às vezes parece ser um sanguinário, enquanto outras vezes ele parece ser bom. Pelo contrário, descobrimos o significado da bondade pelas palavras e ações de Deus, conforme registrado na Escritura, e a partir dessa perspectiva, vemos que Deus é “infalivelmente bom”, mesmo quando ele soberanamente controla o mal. Não há polaridade em sua natureza.

A declaração de Carson não permite essa harmonia, uma vez que ele oferece isso como um exemplo das “polaridades diversas” em Deus. Portanto, para ele, isso deve significar que um conjunto de passagens bíblicas nos puxa para a direção de pensar que Deus é um “soberano sanguinário e cruel”, e isso é equilibrado por outro conjunto de passagens bíblicas ensinando uma parte oposta da natureza de Deus, que ele é “infalivelmente bom”. Eu fico feliz em assumir que isso não é o que ele pretende afirmar, e que é um descuido, mas isso é, de fato, o que sua declaração implica. Aqui eu não trago nenhuma acusação de blasfêmia deliberada, mas quem pode me culpar por acusá-lo e aos outros de pensamento obscuro e antibíblico? Quem pode me culpar por se levantar contra este sacrilégio “ortodoxo”?

Que ninguém seja tão tolo a ponto de me acusar de deturpação. Se eu o deturpei, qual é a verdadeira posição dele? Qualquer compreensão sugerida de sua posição deve manter sua insistência de “diversas polaridades em Deus” e seu uso de dois conjuntos de passagens bíblicas que exibem essas polaridades, e essa visão ainda deve evitar os problemas que eu especifiquei. Mas não há deturpação — embora algumas versões sejam melhor formuladas do que outras, Carson é uma visão popular ensinada nas tradições reformadas e outras tradições teológicas, e é uma blasfêmia.

MISTÉRIO

Então, a pessoa que cita Carson comenta: “Essa visão permite que o mistério dessa doutrina permaneça em vez de tentar segui-la até o seu fim lógico percebido. Onde a Escritura não vai, não devemos ir também”. Novamente, pessoas diferentes podem declarar isso de maneiras ligeiramente diferentes, mas isso representa uma posição popular. Continuando com nossa análise tópica, aqui devemos discutir as ideias de mistério, de implicação lógica e da extensão da revelação bíblica.

Se mistério significa algo que não compreendemos completamente e que, na verdade, não podemos compreender plenamente nesta vida, em termos gerais, não foi demonstrado que existe algum mistério em relação a Deus e seu controle soberano sobre o mal. Eu tenho repetidamente demonstrado que a Escritura nos diz claramente que Deus controla o mal, como ele faz isso e por que ele faz isso. É verdade que não sabemos tudo sobre o assunto, pois a Escritura não nos concede onisciência. Mas essa limitação é irrelevante, uma vez que a onisciência não é a questão aqui. Em vez disso, é afirmado que o assunto permanece um mistério até mesmo no nível mais amplo, e isso é totalmente falso. O que temos da Escritura é completo o suficiente para responder a todas as perguntas amplas, bem como a outras específicas, e eliminar todos os problemas lógicos em nosso entendimento, de modo que não há nem mesmo uma sugestão de contradição, paradoxo, tensão ou qualquer coisa semelhante.

O suposto mistério, então, não existe porque Deus retém informações de nós, nem é porque a matéria é tão complexa que nossa suposta “mente humana finita” não pode compreendê-la (na verdade, o fato de termos que debater este assunto indica que algumas mentes são muito mais finitas do que outras). Mas o mistério existe porque essas pessoas se recusam a aceitar o que Deus revelou clara e coerentemente. Pode haver um problema de aptidão teológica, mas junto com ela há uma forte rebelião contra a revelação divina. A questão, em si, é muito simples.

Eles afirmam que apelam para o mistério onde a revelação bíblica termina, mas isso é uma mentira. A Escritura fornece uma doutrina elaborada sobre o assunto, muito mais completa do que eles estão dispostos a reconhecer. A verdade é que para eles o mistério não começa onde a revelação termina, mas começa onde a sua posição se torna tão obviamente falsa e incoerente que eles apelam ao mistério para parar a discussão pela força. Para eles, o mistério começa onde sua aceitação da Escritura termina.

Aqui esta pessoa diz que devemos chamar o assunto um mistério antes mesmo de seguirmos o que a Escritura revela para o seu fim lógico. Para ser justo, quer ele seja ou não intencionalmente preciso, ele escreve “fim lógico percebido”, admitindo a possibilidade de estar objetando apenas a falsas inferências que são consideradas verdadeiras. Nós prontamente concordamos que falsas deduções são apenas isso — falsas. Mas e as inferências verdadeiras, as deduções válidas?

A resistência comum de seguir o que a Escritura ensina à sua conclusão lógica representa o mal-entendido de que a conclusão lógica de um conjunto de premissas pode produzir algo diferente ou não permitido pelas premissas. Mas isso só é verdade em relação à indução. Com a dedução, o processo de raciocínio, por definição, deriva uma conclusão logicamente necessária das premissas, isto é, uma que já está contida nas premissas. A dedução não fabrica novas informações e a conclusão não produz nada além ou diferente das premissas. Essa conclusão não é inventada como a melhor estimativa baseada nas premissas; pelo contrário, ela é meramente apontada e explicitada. Portanto, recusar-se a fazer ou aceitar uma inferência dedutiva a partir do que a Escritura afirma é o equivalente de recusar o que a Escritura afirma, visto que a conclusão de tal dedução é o que a Escritura afirma.

Ele escreve: “Onde a Escritura não vai, não devemos também”. No entanto, esta deve ser a menor das preocupações dele. Seu problema é sua recusa em ir aonde a Escritura vai clara e explicitamente. Este slogan popular é verdadeiro em si, mas como é usado com muita frequência, não é nada além de uma cortina de fumaça para encobrir uma recusa descarada de aceitar o que Deus revela. Vamos primeiro onde a Escritura nos leva antes de nos preocuparmos em ir além dela.

CONCLUSÃO

É insuportável aguentar as constantes blasfêmias que nossos irmãos em Cristo enfrentam contra Deus, sempre pensando que estão fazendo um serviço a ele. Mas a blasfêmia não é um pecado menor do que o assassinato ou o adultério — em princípio é muito pior. Portanto, por mais doloroso que seja lidar com isso, devemos condenar corajosamente seus falsos ensinos e a teimosa rebelião nos mais severos termos possíveis, exortando seu arrependimento e correção.

Os poucos de nós que afirmam a perfeita coerência óbvia de Deus e sua revelação são frequentemente acusados ​​de ensinar racionalismo. Se a acusação é que nós exaltamos a razão acima da revelação, estou atordoado sobre como isso é possível, uma vez que afirmo que apenas a revelação é racional. E muitas vezes estamos apenas expondo o que a Escritura ensina diretamente, mesmo em suas declarações explícitas, enquanto nossos oponentes criam problemas onde não há nenhum. Eles parecem amar a ideia do mistério ainda mais do que amam o Deus que falou tão claramente para nós. Em vez de sacrificar seu mistério, eles prefeririam matar Deus, destruindo-o de dentro para fora.

Uma descrição mais precisa do racionalismo não bíblico é que ele exalta uma epistemologia não revelacional da especulação humana a fim de julgar o conteúdo da revelação. Certamente eu não faço isso. De fato, por essa definição, nossos oponentes são rotulados mais prontamente como racionalistas, já que, como vimos, eles julgam o controle soberano de Deus sobre o mal por seu padrão não bíblico. Aplicar esse termo a eles é, obviamente, confuso, uma vez que eles não são racionais em nenhum sentido. A verdade é que a rejeição da revelação, da dedução válida e do apelo ilegítimo ao mistério se combinam para produzir uma forma de irracionalismo anticristão.

Em todo caso, se afirmar que Deus é clara e perfeitamente harmonioso em sua natureza e em sua revelação é ensinar racionalismo, então GRAÇAS A DEUS PELO RACIONALISMO. Que o Senhor da Razão envie muito mais trabalhadores para ensinar esse tipo de racionalismo! Esse racionalismo não é de uma variedade humanista ou antissobrenatural, o que não é racional, mas é do tipo bíblico — um racionalismo bíblico, reconhecendo a perfeita coerência de Deus e sua revelação.

NOTAS:

¹ D. A. Carson. How Long, O Lord? Reflections on Suffering and Evil (Baker Books, 1990), p. 225. A afirmação aparece em um capítulo no qual o compatibilismo é exposto e defendido. Revisei o capítulo para ter certeza de que não estamos tirando essa afirmação do contexto. Quanto ao compatibilismo em si, refutei-o em outro lugar.
² Nota do Tradutor: Publicado pela editora Vida Nova (2020).

Vincent Cheung. Blasphemy and Mystery in Theology. Disponível em Blasphemy and Mistery (2007), pp. 31–35. Tradução: Luan Tavares (08/02/2019).

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Written by As Obras de Vincent Cheung

Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos. “Tudo é possível ao que crê.” (Marcos 9:23)

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