Associação com Incrédulos

As Obras de Vincent Cheung
9 min readFeb 2, 2020

--

Como recém convertido ao Cristianismo, considero seus escritos extremamente úteis para entender minha nova fé. Quando me vejo concordando com a perspectiva calvinista e abandonando minha perspectiva humanista/liberal ao longo da vida, percebo que essa mudança na cosmovisão é a obra de Deus, visto que minhas crenças passadas estavam em completa oposição à Escritura. Não se pode simplesmente inverter seu modo de pensar em um mero capricho ou mesmo uma decisão determinada.

Mas agora eu tenho uma pergunta. Um dos meus vizinhos é uma [homossexual, adúltero, etc.]. Antes da minha conversão, eu a considerava uma amiga, mas agora sei que o estilo de vida dela é errado e repugnante, e estou confuso quanto a como devo encará-la. O que devo fazer? Eu paro de me associar com ela? Eu oro para que ela se arrependa e creia em Cristo? Como devo me comportar em ambientes sociais com incrédulos?

A vida de um cristão está em constante oposição à perspectiva e agenda não cristã, e enquanto uma pessoa é uma não cristã, ela vive cada momento de sua vida como uma rebelde contra o Reino de Deus e seu povo. Portanto, neste nível espiritual onde as coisas realmente contam, o cristão e o não cristão mantêm uma constante hostilidade um contra o outro. Embora isso não deva se traduzir em violência física, isso de modo algum diminui a inimizade entre os dois. Pessoas sem discernimento consideram a violência física mais perigosa ou mais digna de atenção, mas o conflito no nível espiritual/intelectual é muito mais profundo e exerce maior influência e significado a longo prazo.

Isso não significa que você deve ser abusivo com os incrédulos o tempo todo. No entanto, sempre deve haver uma consciência clara do que eles são, de modo que, ao interagir com eles, você não opere nas suposições erradas sobre que tipo de pessoas elas são e onde estão. Muitos cristãos são frequentemente tentados a permitir que um sentimento de solidariedade com os homens se sobreponha à sua obrigação e lealdade a Deus. Mas Deus se apraz com aqueles que o colocarão na frente e no centro em tudo o que pensam e fazem (Êxodo 32:25–29; Números 25:3–13; Deuteronômio 13:5–16; Deuteronômio 33:8–11). Uma série de obstáculos na teologia e apologética existem para muitos crentes precisamente por causa disso — nessas questões eles estão do lado os homens ao invés do lado de Deus. Caso contrário, não há razão para que um cristão tenha qualquer hesitação ou dificuldade em responder a um desafio como, digamos, o suposto problema do mal. Isso nunca foi um problema racional para o Cristianismo, mas quando a objeção é levantada, os crentes às vezes simpatizam com a amargura dos homens contra Deus, e permitem que um problema seja formado onde não havia nenhum em primeiro lugar.¹

Você geralmente tem permissão para se associar com incrédulos, mas existem restrições e exceções bíblicas, que não posso enumerar aqui. Em qualquer caso, você não deve mais se comportar com eles da maneira que se comportava antes, e deve abandonar a ideia de manter relacionamentos íntimos e significativos com qualquer um deles. Como seus empenhos mais profundos são agora veementemente hostis aos deles, não é mais possível ter o tipo mais profundo de comunicação e companheirismo com eles. Mesmo as relações mais próximas entre cristãos e não cristãos devem permanecer superficiais. Qualquer um que discorde disso põe em perigo seus empenhos cristãos, ou não entende o que é ter uma amizade verdadeiramente profunda.

Essa realidade encontra sua expressão mais profunda no relacionamento conjugal. Ora, é claro que um cristão não deve se casar com um não cristão, portanto estamos considerando um casamento em que um dos dois incrédulos se converte, ou no qual um cristão se casa com um não cristão em rebeldia contra o mandamento de Deus. Uma vez que o relacionamento matrimonial supostamente é o relacionamento mais próximo possível entre dois seres humanos, esta também é a relação mais próxima possível entre um crente e um incrédulo, mas porque tal relacionamento está fadado a ficar muito aquém do que o casamento pretende ser, é também o mais trágico. De fato, em um relacionamento onde duas pessoas supostamente se tornam uma em espírito e corpo, esses dois indivíduos estão divididos no nível mais profundo, dilacerados pelo vasto abismo que separa o céu e o inferno.

Em contraste, o juramento de casamento entre dois crentes é extraído da própria palavra de Deus (Gênesis 2, Efésios 5, etc.) e exposto diante de Deus como testemunha deles. A capacidade deles de cumprir esse voto vem do constante pacto com o poder de Deus na santificação, e sua confiança mútua também é derivada dessa realidade. Assim como um cristão confia no Espírito Santo para sustentar sua vida espiritual e crescer em conhecimento e santidade, ele depende desse mesmo poder e graça para progredir em seu casamento. Por outro lado, não há poder nem promessa para o não cristão que aceita o voto conjugal. Ele confia em sua própria integridade moral e capacidade, e visto que ele não tem nada disso ou, na melhor das hipóteses, apenas uma aparência disso, seu casamento e todos os seus relacionamentos — como todos os seus pensamentos e atividades — são sem significado e substância.

A questão do nível que devemos interagir com os incrédulos é frequentemente abusada. As pessoas erram em relação aos dois extremos. Há aqueles que pensam que devemos deliberadamente nos desassociar o máximo possível dos incrédulos, mas esse extremo não é comum em nosso círculo. Em vez disso, às vezes há uma necessidade de corrigir uma má aplicação do ensino de que os crentes devem estar “no mundo mas não ser do mundo”. Alguns crentes reformados e evangélicos levam isso muito longe, seguindo sua versão do “mandato cultural”, negação de qualquer distinção “sagrado vs. secular” e a falsa doutrina da “graça comum”. Essa linha de pensamento é algumas vezes usada para desculpar sua licenciosidade e seu desejo pela cultura mundana, divertimentos e associações. Mas estar “no” mundo, ou mesmo estar muito envolvido nele, não significa que devemos aceitá-lo e fazer amizade com ele.

Eu abordei este assunto em outro lugar com ilustrações de várias passagens bíblicas. Por exemplo, os cristãos muitas vezes justificam a socialização desenfreada com os incrédulos na base que Jesus associava aos pecadores. É claro que ele fez isso, mas ele sempre assumiu o controle de cada situação para realizar um propósito espiritual, e se esses cristãos fizessem exatamente isso, então não há razão para nos opormos às suas interações com os incrédulos. Mas estou preocupado que a maioria deles são apenas mentirosa quando se trata disso, enganando a si mesmos e tentando enganar o restante de nós. De qualquer forma, desta vez vamos considerar a seguinte passagem de Paulo:

Já lhes disse por carta que vocês não devem associar-se com pessoas imorais. Com isso não me refiro aos imorais deste mundo, nem aos avarentos, aos ladrões ou aos idólatras. Se assim fosse, vocês precisariam sair deste mundo. Mas agora estou lhes escrevendo que não devem associar-se com qualquer que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou ladrão. Com tais pessoas vocês nem devem comer. Pois, como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os que estão dentro? Deus julgará os de fora. “Expulsem esse perverso do meio de vocês”. (1 Coríntios 5:9–13)

O contexto dessa passagem é a disciplina da igreja. Paulo havia escrito aos coríntios sobre o assunto, instruindo-os a não “associar-se com pessoas imorais” (v. 9). Isso primeiro implica uma avaliação intelectual do estilo de vida de uma pessoa com base nos preceitos morais revelados por Deus. Então, se for determinado que ele teimosamente persiste em conduta imoral, ele deve ser expulso do e evitado pela comunidade de crentes — “Com tais pessoas vocês nem devem comer”.² Prosseguir este procedimento bíblico é “julgar” alguém. Ao contrário de um equívoco popular, a Escritura não ensina um simples “Não julgue”, mas proíbe apenas o julgamento impreciso, superficial e hipócrita.³ De fato, nossa passagem é uma das muitas que exige que os cristãos julguem as pessoas.

Neste contexto, o julgamento exige tanto uma avaliação de uma pessoa quanto uma ação correspondente contra ela. Isso nos ajuda a entender o que Paulo quer dizer quando diz: “Como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Deus julgará os de fora” (vv. 12–13). Ele não quer dizer que os cristãos não devam avaliar o caráter e o comportamento dos não cristãos — ele acabou de chamá-los de imorais, avarentos, ladrões e idólatras (vv. 9–10). De fato, ele diz que se nos recusarmos a nos associar com todas essas pessoas, mesmo quando elas forem incrédulas, então teremos que deixar este mundo completamente (v. 10). A implicação não é que é bom e inofensivo associar-se com incrédulos, mas que o mundo está cheio dessas pessoas imorais, de modo que é impossível evitar completamente o contato com elas. Portanto, a passagem não ensina contra ser “julgador” em absoluto — ao contrário, é uma das passagens mais julgadoras na Escritura, exigindo que o cristão reconheça que o mundo está cheio de incrédulos imorais.

A passagem diz que não devemos “julgar” aqueles que estão fora da igreja porque “julgar” neste contexto significa mais do que uma avaliação da doutrina e conduta de uma pessoa, mas também inclui a execução de ação disciplinar contra ele que envolve todo corpo de crentes. “Julgar” alguém neste contexto significa “Expulsar esse perverso do meio de vocês”, mas o não cristão não está “entre” nós em primeiro lugar, então esse tipo de julgamento não se aplica. Então isso — ação disciplinar corporativa e oficial contra os incrédulos — não é assunto da igreja, mas Paulo acrescenta: “Deus julgará os de fora”. Por outro lado, quando o contexto é tal que o “julgamento” se refere a uma avaliação precisa e não hipócrita da crença e conduta baseada na revelação bíblica, então não há dúvida de que a Escritura exige que “julguemos” todos os não cristãos (Romanos 3:23). Negar isso é negar todo o espectro das doutrinas cristãs, incluindo a depravação do homem e a necessidade da redenção.

Nosso interesse aqui é se os cristãos devem evitar todos os não cristãos imorais. Paulo dá uma resposta negativa, mas isso vem dentro do contexto acima e não pode ser universalmente aplicado sem discriminação ou qualificação. Além disso, que razão ele oferece? E o que a explicação dele implica? Mais uma vez, Paulo afirma que seria impossível evitar todos os não cristãos imorais, porque todos os não cristãos são pessoas imorais e estão em toda parte. A única maneira de evitá-los é deixar este mundo. Pelo menos nesta passagem, ele não diz que evitar os não cristãos é moralmente errado em si — ele declara apenas que é praticamente impossível evitá-los. E pelo menos nesta passagem, ele não diz que associar-se com não cristãos é em si uma coisa desejável, mas apenas que é uma necessidade prática. Portanto, com base nesta passagem, não se pode afirmar que o oposto de não evitar os não cristãos é fazer amizade com eles e ter relacionamentos íntimos e significativos com eles.

Claro que existem outras razões para se associar com incrédulos. Além da impossibilidade prática de evitá-los completamente em transações sociais e comerciais, Deus nos ordenou dar testemunho do evangelho de Jesus Cristo perante todas as pessoas por meio de nossas palavras e ações, através das quais Deus convocará para a fé aqueles que ele criou e escolheu para a salvação, e endurecer aqueles que ele criou e escolheu para a condenação. Mas nada em toda a gama de nossas atividades diante do mundo requer que nos tornemos amigos íntimos dos incrédulos. E, de fato, seria uma impossibilidade espiritual, intelectual, ética e prática fazer isso — novamente, a menos que o cristão ou o não cristão comprometa seus empenhos mais profundos, caso em que ou o cristão não é mais um cristão, ou o não cristão não é mais um não cristão.

NOTAS:

¹ Veja Vincent Cheung, “The Problem of Evil” [“O Problema do Mal”].
² Bem-aventurado é o homem que conhece até mesmo uma igreja que obedece a esse mandamento bíblico. Existe entre nós alguém que “dizendo-se irmão”, mas que é “imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou ladrão” (v. 11)? Existe alguém entre nós que se chama de cristão, mas que é homossexual ou adúltero, ou que é desonesto em seus negócios, ou que fica bêbado? As Escrituras nos ordenam a expulsá-lo. Sugiro que qualquer líder da igreja que se recuse a ensinar e imponha essa ordem deve ser expulso da igreja.
³ Veja Vincent Cheung, The Sermon on the Mount.

Vincent Cheung. Association with Unbelievers. Disponível em Blasphemy and Mystery, pp. 53–56. Traduzido por Luan Tavares em 11/02/2019.

--

--

As Obras de Vincent Cheung
As Obras de Vincent Cheung

Written by As Obras de Vincent Cheung

Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos. “Tudo é possível ao que crê.” (Marcos 9:23)

No responses yet