Absolutismo Graduado
Há aqueles que acreditam que dilemas éticos podem ocorrer dentro do sistema ético de mandamento divino. É quando enfrentamos situações em que dois mandamentos divinos parecem exigir respostas contraditórias. Isto é, em um dilema ético, um mandamento divino parece exigir uma resposta, mas ao mesmo tempo essa resposta parece ser proibida por outro mandamento divino aplicável, e que exige uma ação contraditória. A questão é: quando dois mandamentos divinos parecem se contradizer, qual deles devemos obedecer?
Aqui está um caso de teste favorito ou experimento mental: suponha que uma pessoa venha até você com uma arma mortal exigindo que você revele a localização de outra pessoa, a quem ela pretende assassinar. Parece que dois deveres morais se aplicam nessa situação. Há o dever de preservar a vida do outro, mas se você mentir para desviar o homem de seu alvo, então parece que você estaria violando seu dever de dizer a verdade. Para colocar isso de forma negativa, por um lado, você está proibido de contribuir para a morte injusta de outra pessoa e, por outro lado, você está proibido de mentir.
Várias soluções foram propostas. Entre elas, uma das favoritas é o “absolutismo graduado”. Ele afirma que existe um padrão absoluto de ética, e esse padrão nos é revelado nos mandamentos de Deus. Transgredir a lei de Deus é cometer pecado; no entanto, alguns deveres morais são maiores que outros. Então, ele reconhece que há situações em que os deveres morais se contradizem genuinamente. Nesses casos, a pessoa deve escolher o “bem maior” e, quando ela escolhe, ela está agindo de maneira justa, e o fato de violar o menor mandamento para cumprir o maior não conta como pecado.
De acordo com o absolutismo graduado, o dever de preservar a vida está de algum modo acima do dever de defender a verdade. Portanto, quando aplicado ao nosso caso teste, a fim de cumprir o dever de preservar a vida, você seria moralmente obrigado a mentir. Na verdade, seria pecado não mentir. É surpreendente que muitos cristãos considerem essa linha de pensamento uma boa solução para os dilemas morais. Mas existem vários problemas fundamentais com ele.
Primeiro, o absolutismo graduado é antibíblico e permite que os homens pequem. Embora afirme ser uma forma de absolutismo, na realidade é apenas uma forma de relativismo. Além disso, ele evita o pecado redefinindo-o e não obedecendo aos mandamentos de Deus. A Escritura reconhece que alguns mandamentos são maiores do que outros, mas nunca reconhece que eles poderiam se contradizer, nem diz que devemos seguir apenas os maiores quando eles parecem se contradizer. Quando Jesus fala sobre “os preceitos mais importantes da lei”, ele acrescenta: “Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas” (Mateus 23:23). E quando ele se refere ao primeiro e segundo maiores mandamentos, ele não estabelece o ponto que eles devem ser obedecidos em vez dos menores. Pelo contrário, ele acrescenta: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus 22:40). Em ambos os casos, ele reconhece uma classificação entre os mandamentos de Deus apenas para insistir que devemos obedecer a todos eles.
Segundo, o absolutismo graduado é desnecessário, porque ele lida com falsos dilemas. Usando o caso teste acima como exemplo, há muitas outras opções além de mentir ou não mentir. Pelo preceito bíblico que permite defender-se e defender os outros, a pessoa que enfrenta a decisão pode tentar dominar o pretenso assassino. Ou, ele pode se recusar a revelar a localização da vítima e aceitar as consequências — seja lesão, tortura ou morte. Dependendo da situação e das muitas variáveis que estão em jogo, várias outras opções podem estar disponíveis para a pessoa confrontada com a decisão. Claro que ele poderia até escolher mentir! Mas, em vez de defini-lo, vamos ainda chamá-lo de pecado.¹
Terceiro, o absolutismo graduado é incredulidade, pois duvida da sabedoria da revelação e providência de Deus. Muitas situações parecem ser dilemas morais apenas porque insistimos em usurpar o papel de Deus. É quando julgamos o melhor resultado e depois manipulamos a situação para alcançá-lo. Em vez de obedecer aos mandamentos de Deus conforme nos foram revelados, tentamos prever a consequência de obedecer a cada um deles, julgar a conveniência de cada resultado, classificar nossos deveres morais de acordo (ou seja, não de acordo com a revelação, mas de acordo com o resultado projetado) e, em seguida, fazemos daquele que está no topo da nossa lista a obrigação maior, dispensando-nos de obedecer o restante. Essa é a essência e o método do absolutismo graduado.
Há inúmeras ocasiões em que eu daria a alguém um conjunto de instruções claras apenas para descobrir que ele estava fazendo algo completamente diferente, porque ele achava que fazer do seu modo era melhor ou que produzia um resultado melhor. Alguém assim muitas vezes espera ser elogiado por sua criatividade e desenvoltura, mas o que eu vejo é alguém que é rebelde e que não pode seguir instruções simples. O que vejo é alguém em quem não posso confiar, pois nunca posso saber se vou conseguir o que eu peço dele.
Enquanto eu sei exatamente o que quero quando faço as instruções, posso não dizer à pessoa tudo o que está em minha mente. E por que devo exaustivamente explicar cada pedido a alguém, se ele pode realizar a tarefa perfeitamente apenas fazendo o que lhe é dito? Se eu pedir uma faca de cozinha, não quero que alguém me dê uma arma só porque ele acha que seria uma arma melhor — talvez eu só queira fazer o jantar. E se eu pedir uma arma, não quero que alguém me dê uma bomba nuclear só porque pode causar uma destruição maior — talvez eu queira apenas caçar um urso. Se eu pedir para tirar uma foto minha, não quero que alguém pinte meu retrato só porque tem mais valor artístico. Talvez eu não me importe com o valor artístico — talvez eu só precise da fotografia para renovar meu passaporte. Eu também poderia considerar esse comportamento como um insulto. A pessoa desconsidera minhas instruções aparentemente porque ela acha que sabe melhor o que eu preciso ou desejo, e que sabe melhor como consegui-lo para mim.
Alguém que se torna “criativo” com instruções diretas às vezes se esforça muito para realizar a tarefa — isto é, do seu jeito — , mas na realidade ele é inútil e não confiável. Ele se orgulha muito de seu trabalho, em parte porque ele é criativo com isso e investe nele, mas não consegue executar o que lhe foi pedido. Assim, ele é repreendido, mas porque é completamente autocentrado em sua percepção, ele se considera injustamente acusado e fica indignado.
Da mesma forma, o absolutismo graduado não é nada mais do que rebelião criativa. A Escritura indica quais deveres morais são maiores e menores e, portanto, fornecem uma maneira objetiva (ponto de vista de Deus) de determinar prioridades morais — não para nos justificar dos deveres menores, mas para determinar o grau de culpa e severidade da punição merecida quando desobedecemos. Mas o absolutismo graduado sempre vai mais além do que isso para tomar uma decisão quando confrontado com o que percebe ser um dilema moral. Depende muito da capacidade privada da pessoa de prever os resultados de suas ações, às vezes longe de seu controle e envolvimento imediatos, depois relacionar esses resultados aos mandamentos aplicáveis e depois escolher as ações apropriadas com base na classificação dos mandamentos. Ele não tem confiança na sabedoria de Deus em dar esses mandamentos, e deixa a providência dele de fora de cena. Em outras palavras, ele assume que somos espertos e Deus é estúpido, e que estamos no controle enquanto Deus é impotente.
A solução correta é simples. Em vez de prever os resultados das minhas ações e, em seguida, escolher quais mandamentos obedeço com base nisso, minha responsabilidade e atenção imediatas são os mandamentos de Deus, e deixo para o Doador desses mandamentos cuidar dos resultados. Ele sabia em que tipo de mundo vivemos e ele sabia o que estava fazendo quando deu esses mandamentos. Não cabe a mim fazer com que as coisas saiam “certas” quando eu poderia nem saber o que ele quer da situação ou por que ele quer. “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, ao nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei” (Deuteronômio 29:29). Nosso dever é “seguir todas as palavras desta lei” e não seguir o que determinamos como o curso correto de ação, prevendo o que aconteceria se realmente seguíssemos todas as palavras desta lei.
Mesmo quando seguimos esse princípio bíblico e direto, ainda haverá decisões morais difíceis. No entanto, elas serão difíceis não porque precisamos resolver dilemas morais gerados pelos mandamentos divinos que contradizem uns aos outros — isso nunca acontece. Em vez disso, uma dificuldade reside no esforço contínuo para obter uma compreensão fiel e precisa dos mandamentos de Deus e suas implicações para nossos pensamentos e comportamento. E a outra dificuldade está na luta contínua contra o pecado, exibida na tendência de pensar que sabemos mais do que Deus (como no absolutismo graduado), assim como na tendência de recusar fazer o que sabemos ser certo e insistir em fazendo o que sabemos ser errado. As decisões morais são muitas vezes difíceis, não porque existem muitos dilemas, mas porque há muito pecado e rebelião.
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¹ Quanto a Raabe, a Escritura não a elogia por mentir, assim como não a elogia por ser uma prostituta. Ela elogia sua fé, e somente sua fé. Em Hebreus 11, tudo o que a Escritura diz é: “Pela fé a prostituta Raabe, por ter acolhido os espiões, não foi morta com os que haviam sido desobedientes” (v. 31). Ela elogia Raabe por ter “acolhido os espiões”, e não porque mentiu para salvá-los. Sua fé envolveu ouvir e crer, e então agir de acordo com sua fé no Deus de Israel (veja Josué 2:8–13).
Assim, a Escritura afirma o aspecto positivo do que ela fez, mas não nos dá uma interpretação direta sobre o aspecto negativo da mentira. Contudo, a partir dos Dez Mandamentos e todas as outras porções da Escritura, devemos interpretar o ato de mentira de Raabe como pecaminoso. Lembre-se que ela era uma prostituta numa nação pagã, em uma religião pagã, e que ela tinha apenas ouvido “rumores” sobre essa nação de Israel e o seu Deus. Ela não estava acostumada com os mandamentos de Deus, e de fato, até mesmos os israelitas tinham dificuldade em obedecer aos mesmos. Isso não tem o objetivo de tirar sua culpa, mas permitir que vejamos que ela fez a única coisa que sabia que deveria fazer, como produto de sua fé. Era uma fé imatura e ignorante, mas era fé mesmo assim. A mentira nunca foi elogiada, nem sequer mencionada posteriormente.
O caso de Raabe é frequentemente citado para apoiar o absolutismo graduado (ou outras formas de relativismo), mas note que embora nossa interpretação seja extraída de textos da Escritura (que mentir é pecado, etc.) e silêncios da Escritura (que ela não a elogiou por mentir, etc.), para usar Raabe com o intuito de apoiar o absolutismo graduado, a pessoa já deve ter primeiro assumido absolutismo graduado. Isto é, visto que a Escritura nunca a elogia por mentir, para usá-la como um exemplo para apoiar o absolutismo graduado a pessoa deve interpretar seu caso a partir do ponto de vista do absolutismo graduado, e inferir sem garantia real que a fé que a Bíblia louva incluía o seu pecado, ou que o mentir não foi contado como pecado.
Vincent Cheung. Graded Absolutism. Também disponível, com a nota de rodapé, em Commentary on First Peter (2006), pp. 87–91. Tradução: Luan Tavares (11/02/2019).
Sobre o autor: Vincent Cheung é um pregador e escritor cristão. Ele e sua esposa moram nos Estados Unidos.
Site oficial: https://www.vincentcheung.com/